Filmar em película ou digital? A pergunta envolve algum mais do que uma mera decisão técnica — este texto foi publicado no Diário de Notícias (1 Fevereiro), com o títulos 'Questionando as opções da Kodak'.
Nascido em Nancy, em 1957, o francês Bruno Delbonnel é um dos mais talentosos directores de fotografia do cinema contemporâneo. A sua carreira ganhou uma dimensão internacional quando criou as imagens de O Fabuloso Destino de Amélie (2001), o filme de Jean-Pierre Jeunet em que Audrey Tautou vivia uma insólita aventura romântica, tão familiar quanto surreal. Amélie valeu-lhe, em Hollywood, a primeira de quatro candidaturas ao Oscar de melhor fotografia — voltou a ser nomeado com Um Longo Domingo de Noivado (2004), de novo de Jeunet, Harry Potter e o Príncipe Misterioso (2009), de David Yates, e A Propósito de Llewyn Davis (2013), dos irmãos Coen.
Recentemente, num forum realizado em Dublin sobre as novas tecnologias digitais aplicadas no fabrico dos filmes, Delbonnel fez algumas observações sobre as quais vale a pena reflectir. Não se trata de negar as potencialidades da conjuntura gerada pelos materiais digitais. Aliás, os seus pontos de vista recusam qualquer maniqueísmo no sentido de valorizar a clássica película de 35 mm contra os recursos das câmaras digitais (Amélie foi rodado em película).
No seu trabalho mais recente — Olhos Grandes, de Tim Burton (estreia: 26 Fevereiro) —, Delbonnel viu-se “forçado” a utilizar uma câmara digital, de modo a superar uma série de constrangimentos resultantes do facto de a rodagem ter decorrido em cenários canadianos, com o tratamento laboratorial das imagens a ser efectuado em Los Angeles. Em qualquer caso, o maior problema não está no uso dessa alternativa, mas no facto de, muitas vezes, já não haver... alternativa.
Delbonnel insurge-se, sobretudo, contra o facto de um grande fabricante como a Kodak ter orientado a sua evolução para o digital, secundarizando a película. “Basicamente, não temos possibilidade de escolha”, diz ele, lembrando que isso limita o labor de criação de um “tom” que sirva cada filme. A utilização rotineira do digital está mesmo a contribuir para alguma banalização artística: “O perigo do digital é que corremos o risco de ficar seduzidos pelo que vemos. E é isso que está errado com muitos filmes actuais — perderam consistência”.
Seja como for, a Kodak não abandonou o fabrico de película para a indústria. Aliás, a chamada de atenção de Delbonnel surge na sequência de algumas intervenções públicas de nomes emblemáticos de Hollywood, alertando para os perigos da digitalização compulsiva de todo o universo cinematográfico. Em Agosto do ano passado, Martin Scorsese manifestara o seu contentamento pelo facto de a Kodak ter mostrado disponibilidade para negociar com os grandes estúdios a continuidade da produção de película. Em jogo está a necessidade de não confundir as transformações tecnológicas com um “progresso” inevitável. Até porque, como Scorsese lembrou, a película continua a ser o material mais adequado, porque “mais resistente à passagem do tempo”, para a preservação do património cinematográfico.