O problema de Johnny Depp não estará tanto no falhanço comercial de alguns dos seus títulos mais recentes, antes na sensação de que ele tende a repetir, preguiçosamente, o seu próprio cliché de "excentricidade" — este texto foi publicado no Diário de Notícias (29 Janeiro).
O novo filme protagonizado por Johnny Depp, O Excêntrico Mortdecai, surge sob o signo de um impasse. De facto, mesmo os mais militantes admiradores de Depp, reconhecem que a sua carreira chegou a uma encruzilhada difícil: será que o actor que se celebrizou através de personagens mais ou menos frágeis e bizarras, por vezes dramaticamente solitárias (lembremos Eduardo Mãos de Tesoura, sob a direcção de Tim Burton, já lá vão 25 anos), deve manter-se fiel a um padrão de excentricidade que, cada vez mais, corre o risco de o afastar do seu próprio público?
Será, por certo, uma importante questão conceptual e artística, sobretudo para alguém que já passou a barreira dos 50 anos (completará 52 no dia 9 de Junho). Mas é também um problema de performance financeira. E se é verdade que as qualidades artísticas dos filmes não são uma consequência directa dos milhões que movimentam, não é menos verdade que alguém como Depp ocupa o centro de uma complexa encruzilhada financeira. Afinal, através da personagem do capitão Jack Sparrow, ele é a imagem mais forte dessa saga de impressionante sucesso que é Piratas das Caraíbas: os quatro títulos já produzidos (há um quinto capítulo em pré-produção, com lançamento previsto para 2017) renderam mais de 3 mil milhões de euros...
Para já, as perspectivas geradas por O Excêntrico Mortdecai são pessimistas. No primeiro fim de semana de exibição nos EUA, o filme acumulou pouco mais de 4 milhões de dólares, valor muito fraco mesmo para um orçamento apenas “mediano” (60 milhões) no contexto dos grandes estúdios americanos. São valores ainda mais negativos se compararmos as receitas por ecrã com idêntica performance de Sniper Americano, de Clint Eastwood, pela segunda semana consecutiva no primeiro lugar do top: enquanto o filme de Eastwood consegue mais de 17 mil dólares/ecrã, O Excêntrico Mortdecai não chega a atingir os dois mil. Na contabilidade de Depp é mais um fiasco comercial que se soma aos de O Mascarilha (2013) e Transcendence: A Nova Inteligência (2014).
É caso para dizer: os filmes não se medem aos... dólares! E podemos até considerar que a sofisticada inteligência de um título como O Mascarilha — revendo a saga do velho Oeste num misto de ironia ideológica e crueza dramática — foi morta à nascença por um marketing que o quis vender como uma variação, em tom de “western”, precisamente dos Piratas das Caraíbas.
O Excêntrico Mortdecai não consegue resolver alguns problemas básicos de concepção e narrativa. O filme baseia-se nos livros de culto do inglês Kyril Bonfiglioli (1928-1985), centrados na figura do Lord Charlie Mortdecai, aristocrata de pose irónica, perito em obras de arte e, sobretudo, nos circuitos das suas transacções nem sempre muito transparentes. Dir-se-ia que era um universo que apelava a uma abordagem a meio caminho entre a farsa social e a comédia burlesca. E convenhamos que ao realizador David Koepp não faltará experiência para lidar com tal fusão de géneros — recorde-se que, como argumentista, ele trabalhou, por exemplo, no Parque Jurássico (1993), de Steven Spielberg.
Infelizmente, O Excêntrico Mortdecai parece nascer de um profundo desequilíbrio artístico. Por um lado, estamos perante um objecto de requintada fabricação de estúdio, desde a cenografia ao guarda-roupa, culminando nas imagens assinadas pelo alemão Florian Hoffmeister, um dos mais talentosos directores de fotografia da actualidade. Por outro lado, Mortdecai existe menos como personagem e mais como pivot de uma série de pequenas anedotas, porventura eficazes no plano literário, mas cinematograficamente muito pouco inspiradas.
Parece evidente que este momento de queda da cotação de Depp está longe de impedir uma nova ascensão artística e comercial — recorde-se que, entre os seus projectos, e para além da nova sequela de Piratas das Caraíbas, se inclui uma adaptação de London Fields, de Martin Amis, com assinatura de Mathew Cullen. Mas é um facto que, nos últimos tempos, alguns dos mais interessantes trabalhos de actores possuem uma complexidade com que o Mortdecai de Depp não se pode confrontar.
Mesmo ficando por aqueles que estão nas nomeações para os Oscars, podemos citar os casos exemplares de Steve Carell e Michael Keaton, ambos candidatos na categoria de melhor actor, respectivamente com Foxcatcher e Birdman. Carell sujeita-se também a uma elaborada transfiguração física (com o seu já célebre nariz postiço), mas num registo que se aproxima da pulsação mais íntima da tragédia. Por sua vez, Keaton, tal como Edward Norton (nomeado também por Birdman, para melhor actor secundário), trabalha num estilo de sedutora ambivalência — um actor a representar um actor —, pouco comum em muitos géneros da actual produção dos grandes estúdios.
Talvez que o impasse de Depp decorra desse paradoxo: num cinema de muitos “super-heróis”, mais ou menos fabricados por efeitos especiais, como preservar a maravilhosa vulnerabilidade da arte humana de representar? Esperemos pelos próximos capítulos.