segunda-feira, janeiro 26, 2015

Na morte de Anita Ekberg

Com a morte de Anita Ekberg, desapareceu uma das figuras mais míticas do imaginário "felliniano" — este obituário foi publicado no Diário de Notícias (12 Janeiro), com o título 'A Miss Suécia que foi musa de Fellini'.

Se há figuras que conquistam um lugar na mitologia cinematográfica apenas através de uma personagem, Anita Ekberg será, por certo, um dos exemplos mais eloquentes. Graças ao papel de uma actriz americana que se envolve com o jornalista interpretado por Marcello Mastroianni em A Doce Vida (1960), de Federico Fellini, transformou-se em ícone da sedução feminina e, durante a década de 60, num dos sex symbols do mundo do cinema — a sua célebre cena nas águas da fonte de Trevi, em Roma, sob o olhar deslumbrado de Mastroianni, ficou mesmo como um pequeno tratado sobre os enigmas das relações masculino/feminino. Com o seu falecimento aos 83 anos — a 11 de Janeiro, numa clínica na região de Roma —, desaparece aquela que foi, afinal, um símbolo exuberante de todo um cinema italiano (e europeu) em período de admirável energia criativa.
Não era italiana, mas sueca. E não começou pelo cinema da Europa. De seu nome Kerstin Anita Marianne Ekberg, nasceu em Malmö, a 29 de Setembro de 1931, tendo a sua vida mudado quando, em 1950, foi eleita Miss Suécia. A disputa do título de Miss Universo levou-a aos EUA. Não venceu o concurso, mas o facto de ter ficado entre as seis finalistas deu-lhe um contrato com a Universal Studios, iniciando uma carreira de starlet que lhe deu papéis mais ou menos decorativos em comédias como Abbott e Costello Vão para Marte (Charles Lamont, 1953). Entre os filmes mais importantes em que participou incluem-se Pintores e Raparigas (1955), de Frank Tashlin, com a dupla Jerry Lewis/Dean Martin, e a adaptação de Guerra e Paz (1956), dirigida por King Vidor.
Promovida como a “Marilyn Monroe da Paramount”, acabou por ser, sobretudo, uma típica pin-up da década de 50. Esse estatuto apenas mudaria através de A Doce Vida, com Fellini a oferecer-lhe o papel de uma “mulher de sonho” que, num certo sentido, bloqueou os horizontes da sua própria carreira. Uma vez, reconhecendo esse paradoxo, terá mesmo dito: “Fui eu que tornei Fellini famoso, não o contrário”.
Trabalhou de forma regular até ao início da década de 90, quase sempre em papéis que tentavam duplicar a imagem de glamour dos anos 50. São exemplos dessa lógica a comédia Estes Turistas Americanos (Mel Stuart, 1969), o western O Cavaleiro da Vingança (Tanio Boccia, 1972) ou a aventura As Amazonas de Ouro (Mark L. Lester, 1979). Em boa verdade, depois de A Doce Vida, os momentos mais significativos da sua filmografia continuaram a ter assinatura de Fellini: primeiro, no filme de episódios Boccacio 70 (1962), como uma mulher-gigante que “salta” de um painel publicitário para assombrar a existência do pacato Dr. António (Peppino De Filippo); depois, em Os Palhaços (1970) e Entrevista (1987), no seu próprio papel, partilhando com Fellini a evocação terna e nostálgica de tempos de maior glória.
A mulher cujos pais, nas palavras de Bob Hope, mereceram vencer o “Nobel da Arquitectura”, teve uma existência especialmente difícil nos seus derradeiros anos: problemas financeiros levaram-na mesmo a pedir auxílio à Fundação Fellini, sediada em Rimini. Para a história, ficará como uma imagem emblemática do imaginário erótico dos anos 60, a ponto de ter sido citada no segundo álbum de estúdio de Bob Dylan, The Freewheelin’ Bob Dylan (1963): no tema I Shall Be Free, há uma estrofe em que o cantor diz que recebeu um telefonema do Presidente Kennedy, perguntando-lhe o que é preciso para “fazer crescer” o país; Dylan responde-lhe com três sugestões: “Brigitte Bardot, Anita Ekberg e Sophia Loren” — eis o respectivo registo audio.


>>> Obituário no New York Times.