Mais uma visita ao prodigioso Adeus à Linguagem, de Jean-Luc Godard: um filme deste tempo, fora de qualquer medida do tempo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (11 Janeiro), com o título 'Nostalgia da experiência interior'.
Num mundo perfeito, a estreia de um filme tão genial como Adeus à Linguagem, de Jean-Luc Godard, mobilizaria pessoas, instituições e meios de comunicação muito para além da acomodação de qualquer rotina. Estamos perante uma singularíssima expressão do trabalho de um autor que, desde os tempos heróicos da Nova Vaga francesa (parecendo que não, a sua primeira longa-metragem, O Acossado/À Bout de Souffle, surgiu há 56 anos), nunca desistiu de fazer filmes questionando o cinema, as linguagens que nele confluem e o seu lugar no labirinto das artes.
É verdade: não vivemos num mundo perfeito. De alguma maneira, Adeus à Linguagem existe como um objecto confessional em que o cineasta começa por reconhecer a imperfeição do próprio cinema. Imperfeição técnica? Impotência expressiva? Fragilidade comunicacional? Nada disso. Sucede que o cinema deixou de ser o modelo central do espectáculo (que foi durante grande parte do séc. XX), vivendo nós num caldeirão de acontecimentos “instantâneos”, muitas vezes protagonizados por patéticos “famosos”, todos os dias empolados pelo dispositivo televisivo. O humanismo passou a ser uma miragem retórica porque, afinal, os valores sociais dominantes ignoram a irredutibilidade individual. Como diz Philippe Sollers, a certa altura citado nos diálogos do filme: “A experiência interior passou a ser interdita pela Sociedade em geral e pelo Espectáculo em particular”.
Pelo menos desde finais da década de 80, com as suas monumentais História(s) do Cinema (disponíveis no mercado do DVD), Godard lida com esse desgaste dos valores primordiais do cinema assumindo cada filme, grande ou pequeno, em película ou em video, como um conjunto de páginas de um bloco-notas em permanente redacção.
Por um lado, há nas suas deambulações cinematográficas (apoiadas em técnicas videográficas) muitos tópicos eminentemente auto-biográficos: a maior parte dos seus filmes passou mesmo a ter como cenário a zona da Suíça onde Godard reside, em Rolle, nas margens do Lago Léman; por outro lado, a estrutura de cada filme tem tanto de exposição individual como de especulação sobre a possibilidade de o cinema sobreviver num mundo em que as imagens (e os sons!) passaram tantas vezes, demasiadas vezes, a existir como meros instrumentos de mecanismos mais ou menos sensacionalistas enraizados em lugares-comuns televisivos. Uma personagem o diz: “Aquilo que eles chamam as imagens tornou-se o assassinato do presente”.
Como quase sempre acontece no cinema de Godard, através de momentos tão diversos como O Acossado, Tudo Vai Bem (1972) ou Elogio do Amor (2001), deparamos com homens e mulheres que vivem e revivem a própria possibilidade de constituírem um par. A dicotomia masculino/feminino está no cerne deste cinema em que, em última instância, se discute sempre a sublime arte de saber aceitar as suas próprias imperfeições.