domingo, novembro 30, 2014

José Sócrates nas malhas da "reality TV"

RENÉ MAGRITTE
O Duplo Segredo
1927
Para nossa maior desgraça social, o efeito "José Sócrates" relança uma profunda desumanização televisiva — esta crónica de televisão foi publicada na revista "Notícias TV", do Diário de Notícias (28 Novembro), com o título 'Sócrates na "reality TV"'.

Na agitação televisiva em torno da prisão de José Sócrates, tem emergido um sintoma esclarecedor: não há debate nem comentário em que não seja referida a irresponsabilidade de um jornalismo que vive em regime de duplo parasitismo com as atribulações do aparelho judicial.
É um progresso, apesar de tudo. Noutros tempos, quando alguém chamava a atenção para o linchamento mediático a que Sócrates estava a ser sujeito, tal bastava para que a estupidez “social” rotulasse de perigosa ameaça qualquer mente que não abdicasse do simples gosto de pensar.
Permito-me, por isso, repetir algumas palavras que escrevi a propósito de certas formas de tratamento televisivo de Sócrates, apontando a necessidade de discutir “as matrizes populistas da informação”, desmontar as suas “estratégias de produção de verdade” e compreender o modo como afectam as “representações globais da sociedade portuguesa”. E faço questão em voltar a escrever que a pertinência de tais questões se mantém, “mesmo que se venha a provar que José Sócrates é um malfeitor que merece a prisão perpétua (espero, aliás, se esse for o caso, que a justiça seja rigorosa e exemplar)”.
São palavras de um texto de Junho de 2010 e, se é verdade que não confundo a minha subjectividade com qualquer modelo de universalidade, não é menos verdade que permanecemos deficitários na reflexão sobre tais problemas. Com essa diferença, insisto, de agora haver mais vozes incomodadas com a degradação de alguns padrões jornalísticos.
Infelizmente, são poucos os que mostram disponibilidade para reflectir sobre tal degradação, enfrentando os efeitos apocalípticos da reality TV, não apenas no espaço televisivo, mas em todo o tecido social português (na noite de segunda-feira, na SIC Notícias, Clara Ferreira Alves foi uma das excepções). De facto, num contexto em que a obscena boçalidade do Big Brother foi imposta como coisa “natural” do quotidiano, não se pode esperar que o mais básico respeito por um ser humano — anjo ou demónio — seja um valor consistente da colectividade.

Nasceu um herói independente


Há atuações ao vivo que definem momentos de viragem (ou revelação). E se uma sala maior do Cinema São Jorge à pinha, mais extensa fila lá fora (quase a chegar à esquina da Rua do Salitre), davam conta, às onze da noite, de que havia expectativa no ar para ver Perfume Genius, a ovação e satisfação com que a sala se despediu pouco depois da meia noite não deixavam dúvidas: nasceu um novo herói independente. E podemos todos agradecer a Queen (brilhante single de apresentação do mais recente Too Bright), que fechou de forma intensa o alinhamento do concerto, o papel de catalisador de algo que o álbum veiculou e o concerto agora confirmou. 

Aquele que ali vimos era o mesmo Mike Hadreas que, há uns dois anos, apresentara um frágil e soberbo alinhamento de canções ao fim da tarde no palco secundário do Meco, um uma plateia dedicada, mas pouco numerosa. Vestia agora de preto, sapatos reluzentes, ora sentado frente ao teclado, ora de pé de microfone na mão, ora entre o sussurro de palavras íntimas e o grito visceral que projeta a ira com que ajudou a moldar as canções de um álbum que marcou o ano que está a terminar. Mostrava ainda maior confiança no enfrentar das plateias. Mas não esconde uma timidez natural nem volta as costas à forma como se expõe através das canções. O que mudou mais, afinal, foi a atenção com que agora muitos mais o seguem.

Sem corantes nem conservantes, sem aparatos, as canções falam por si e nele confirmam um dos grandes cantautores do nosso tempo. Ao cabo de três álbuns o projeto Perfume Genius tem já um corpo expressivo (e versátil) de temas que suportam um alinhamento que vinca, através de uma personalidade bem demarcada, um saber estar na música que celebra o que de melhor há na expressão das marcas de um autor: o ser único. E assim se fez a melhor noite de música ao vivo que vi em 2014.

Perfume Genius
Cinema S. Jorge - Vodafone Mexefest 2014

Alison Mosshart em The Walking Dead

A série de The Walking Dead tem sido também um espaço privilegiado para algumas canções. Exemplo recente, no sexto episódio da temporada nº 5 [Consumed]: Alison Mosshart, de The Kills, surge na companhia de Eric Arjes a interpretar Bad Blood [na capa do single figura Melissa McBride, intérprete de Carol] — o lyric video, aqui em baixo, é rudimentar, mas a canção não deixa de ser magnífica.

sábado, novembro 29, 2014

Andy Stott, paisagista

Dois anos depois de Luxury Problems, Andy Stott, produtor e DJ de Manchester, reaparece com nova digressão electrónica, celebrando a lógica paisagística do seu som techno — ainda e sempre com a contribuição preciosa da voz de Alison Skidmore, o seu novo álbum Faith in Strangers apresenta-se como uma colecção de exóticos lugares, com tanto de agreste como de paradoxalmente acolhedor. Há em tudo isto uma contemplação quase cinematográfica, em que tudo o que é exterior se pode transfigurar em figuração secretamente interior — para ouvir, aqui em baixo.

sexta-feira, novembro 28, 2014

Elogio dos irmãos Dardenne

Jean-Pierre e Luc Dardenne
O que é o realismo? E como é que o realismo convoca o olhar do espectador? O cinema dos irmãos Dardenne continua a possuir respostas fascinantes — este texto foi publicado no Diário de Notícias (23 Novembro), com o título 'Uma ética que pensa no espectador'.

Seria interessante perguntar porque é que, num ambiente mediático muitas vezes disponível para as mais diversas formas de anti-americanismo primário, existem formas de informação televisiva automaticamente disponíveis para destacar tudo o que é blockbuster de Hollywood? Mais do que isso: nesse mesmo ambiente, regularmente empenhado em celebrar os ideais da nossa querida Europa, porque é que a estreia de um filme como Dois Dias, uma Noite, assinado pelos irmãos belgas Luc e Jean-Pierre Dardenne, é tratada de modo ultra-discreto, à beira do invisível?
Na melhor das hipóteses, tal atitude resultaria de juízos de valor negativos sobre o filme. E digo “na melhor das hipóteses” porque, a acontecer, isso espelharia, pelo menos, alguma forma de convicção. Ora, o problema de fundo é de outra natureza e pode resumir-se na mais triste das palavras: indiferença. Afinal de contas, Dois Dias, uma Noite tem como intérprete principal a francesa Marion Cotillard, por certo a estrela europeia hoje em dia com maior projecção internacional. Mas nem isso é suficiente para que se dê à sua prodigiosa interpretação ao menos o mesmo tempo de antena oferecido a qualquer vedeta imberbe, americana ou europeia, a bater o recorde de banalidades num soundbyte de cinco segundos...
A importância dos Dardenne na história do cinema europeu dos últimos anos (lembremos a sua revelação, em 1996, com A Promessa) pode caracterizar-se a partir de uma fundamental postura ética na relação com o espectador. Marion Cotillard o disse, de forma simples e eloquente, na conferência de imprensa de Dois Dias, uma Noite, no Festival de Cannes (20 Maio): “Quando começámos os ensaios, eles falavam do espectador, o que é muito raro. Em certas rodagens, nem sequer se tem autorização para o evocar. Jean-Pierre e Luc fazem cinema para o espectador — estão empenhados em fazê-lo experimentar coisas vivas.”
Será preciso lembrar que esta vontade de tocar o espectador não tem nada a ver com essa moral rasteira, enraizada na mais demagógica ideologia de marketing, que tenta reduzir qualquer forma de espectáculo aos números das “audiências”? Importa, aliás, sublinhar que o cinema dos Dardenne se fundamenta numa contundência realista que, além de nada ter a ver com o decrépito “naturalismo” televisivo, mantém uma aguda actualidade social e política.
O caso de Dois Dias, uma Noite é, uma vez mais, modelar. A história da mulher (Cotillard) que tenta salvar o seu emprego através de um angustiado apelo de solidariedade aos colegas não é uma banal ficção “sindical”: compreendemos que a sua acção, apesar de intensamente política (ou precisamente por causa disso...), escapa a qualquer rótulo político-partidário. Nesta perspectiva, os Dardenne são sobreviventes do mais genuíno humanismo clássico, valor todos os dias menosprezado no nosso espaço mediático.

E chegou o primeiro 'teaser' de 'Star Wars 7'



Pode um teaser ser um dos acontecimentos do ano cinematográfico? Sim, se for o momento em que começamos a ver o que será a reativação de uma das mais importantes sagas da história do cinema... O filme Star Wars: The Force Awakens, só estreia em 2015... Mas a força começa a despertar aqui.

Ver + ouvir:
Baxter Dury, Palm Trees



Para fazer pensar nos dias de calor que só voltam em 2015 (pelo menos nestas latitudes), eis o teledisco que apresenta o novo disco de Baxter Dury.

Vodafone Mexefest 2014:
os horários dos concertos (dia 28)


E chegou o primeiro dos dois dias da edição 2014 do Vodafone Mexefest, que toma uma vez mais a Avenida da Liberdade e espaços em volta como cenário. Hoje é dia de não perder a atuação de St. Vincent no Coliseu dos Recreios. Mas há mais a ver e ouvir. Consultem aqui os horários:

19h30 - 20h15 Sara Paço (Palácio Foz)
19h40 - 20h30 Ana Cláudia (Sociedade de Geografia)
20h00 - 20h50 NBC (Casa do Alentejo)
20h10 - 20h55 Old Yellow Jack (Cinema São Jorge - Sala Montepio) 
20h15 - 21h00 Mike Bek (Café Starbucks)
20h30 - 21h30 JJ (Igreja de S. Luís dos Franceses)
21h00 - 22h00 Capicua (Cinema São Jorge - Sala Manoel de Oliveira)
21h00 - 21h50 Deers (Garagem EPAL)
21h00 - 22h00 Sinkane (Estação do Rossio)
21h15 - 22h00 Francis Dale (Palácio Foz)
22h00 - 04h00 Príncipe Showcase (Ritz Clube)
22h00 - 23h00 Tune-Yards (Coliseu dos Recreios)
22h05 - 22h55 Éme (Cinema São Jorge - Sala Montepio) 
22h50 - 23h50 Pharoahe Monch (Ateneu Comercial de Lisboa)
23h00 - 23h40 Shura (Casa do Alentejo)
23h10 - 00h20 Clã e Convidados (Cinema São Jorge - Sala Manoel de Oliveira)
23h15 - 00h15 King Gizzard & The Lizard Wizard (Garagem EPAL)
23h20 - 00h20 Kindness (Estação do Rossio)
00h15 - 01h45 St. Vincent (Coliseu dos Recreios)
01h00 - 02h00 Stereossauro (Ateneu Comercial de Lisboa)

Vodafone Bus I com Turbo Balkan Beats às 19h45 - 20h00 / 20h45 - 21h00 / 22h00 - 22h15 / 23h10 - 23h25

Vodafone Bus II com Zanzibar Aliens às 21h45 - 22h00 / 22h55 - 23h10 / 00h00 - 00h15 / 01h45 - 02h00

Novas edições:
Neil Young

“Storytone”
Warner
3 / 5

Poucos meses depois de ter lançado um disco feito de versões de canções de autores como Bob Dylan, Bruce Springsteen ou Willie Nelson, Neil Young apresenta no seu segundo disco de 2014 um novo conjunto de canções onde explora, sobretudo, a relação da sua escrita com as várias possibilidades de arranjos que encontra na linha do horizonte, do trabalho com orquestra (que representa a esmagadora maioria do alinhamento) ao relacionamento com uma big band, não deixando de visitar, em dois instantes, o som mais “crú” e elétrico de uma banda de rock. Storytone é essencialmente um álbum tranquilo no qual, através de um conjunto de composições de recorte clássico, Neil Yong reflete sobre o mundo em que vivemos e os desequilíbrios gerados pelo homem, reafirmando uma consciência ambientalista que antes já expressara em diversas ocasiões. Não o faz contudo segundo um programa ideológico ou uma agenda ativista, não deixando, por exemplo, de celebrar (uma vez mais) a sua paixão pelos carros – a quem dedicou mesmo um livro recentemente – quando canta I Want To Drive My Car. Aos 69 anos, com uma voz de tonalidades frágeis – que contrasta com a segurança da escrita e a continuada vontade em não fechar a sua música numa redoma de formas repetidas – Neil Young aceita juntar em Storytone a “arte final” de um álbum a um olhar pela nudez das mesmas canções tal e qual saíram originalmente dos seus dedos, juntando numa edições do disco, e como extra, as versões em maquete acústica dos mesmos temas. Entre as duas leituras, além das narrativas e reflexões que as canções veiculam, passa assim uma possibilidade de contacto com o que de diferente pode nascer de uma ideia original para voz e guitarra, ocasionalmente piano ou harmónica e a visão final de uma canção.

Uma mulher de volta à Fórmula 1?


Para acabar com uma das mais antigas ditaduras de género no desporto, a do mundo da Fórmula 1, a Williams acabou de anunciar que Suzie Wolff será a piloto de testes oficial da equipa em 2015. Pontualmente realizou testes em 2014 (mais concretamente nos GP Alemanha e Inglaterra) e, em 2015, estará assim entregue a um papel mais regular ao longo da temporada.

Não será contudo um regresso garantido às pistas em dia de corrida, algo que não acontece desde que Giovanna Amati fez alinhar um Brabham, por três vezes, durante o mundial de 1992.

Ao todo, e em mais de 60 anos de mundial de F1, apenas seis mulheres participaram oficialmente na modalidade. Metade foram italianas, uma delas, Lella Lombardi, tendo sido a única a pontuar (em 1976, no GP Espanha, ao volante de um March).

Curiosamente a equipa que mais mulheres empregou foi a Williams. Com Lella Lombardi (num único GP em 1976), Desire Wilson (no GP Inglaterra de 1980) e, agora Susie Wolff.

Para ouvir: clássicos, segundo
Zooey Deschanel e M Ward

A dupla She & Him - que é como quem diz Zooey Deschanel e M Ward - prepara-se para lançar um álbum essencialmente feito de versões. Chamou-lhe simplesmente Classics e pode ser já escutado na íntegra.

Pode ouvir aqui o disco, via NPR.

Para ler: vinil alcança um milhão
de vendas no Reino Unido em 2014

As vendas de discos em vinil alcançaram já este ano, no Reino Unido, a marca do milhão, algo que não sucedia há cerca de 20 anos. O vinil representa todavia 2% do consumo total de música gravada. Números que dão que pensar. E sobre os quais vale a pena refletir.

Para já podem ler aqui a notícia na BBC.
E aqui um comentário no Guardian.

Ronaldo, Messi e os outros

JOSÉ MALHOA
As Padeiras, Mercado em Figueiró
1898
As televisões insistem em promover Cristiano Ronaldo como bandeira de um patriotismo pueril... Pobre Cristiano Ronaldo — esta crónica de televisão foi publicada na revista "Notícias TV", do Diário de Notícias (21 Novembro), com o título 'Ronaldo & Messi'.

Não sei se o leitor gosta de ver futebol na televisão como eu gosto. Em todo o caso, atrevo-me a pensar que, mesmo gostando, terá sentido a sua paciência a claudicar face às infinitas especulações que envolveram a presença de Cristiano Ronaldo e Lionel Messi no Argentina-Portugal de terça-feira [18 Nov.]. Porque era o duelo dos dois melhores jogadores do mundo... Porque cada um deles ia tentar mostrar que era melhor que o outro... Porque a atribuição da Bola de Ouro se ia decidir nesse jogo...
Nem mesmo o facto de Fernando Santos ter declarado publicamente que já tinha entregue o seu voto trouxe alguma razoabilidade a tanta especulação gratuita, quanto mais não fosse lembrando que o troféu em causa diz respeito a um ano de actividade (em que cada um dos candidatos terá participado numa boa meia centena de jogos) e que o Argentina-Portugal era apenas um encontro particular. Isto para já não falarmos do atestado de incompetência que, implicitamente, se passa a figuras como Gareth Bale, Diego Costa, Mario Goetze, Neymar ou Arjen Robben, todos eles incluídos na lista oficial de candidatos à Bola de Ouro.
Como se isto não bastasse, Ronaldo e Messi desapareceram ao intervalo do jogo (substituídos por Ricardo Quaresma e Nicolas Gaitan, respectivamente). Teria sido um pretexto interessante — quero eu dizer, jornalisticamente pertinente — para questionar a lógica de um evento hiper-valorizado pelos discursos televisivos dominantes. Como? Perguntando, por exemplo, porque é que as vedetas que sustentam toda a promoção do jogo, afinal surgem apenas para cumprir uma figuração mais ou menos secundária.
No caso português, tudo isso é tanto mais deprimente quanto Ronaldo passou a ser frequentemente tratado (entenda-se: noticiado) como símbolo sagrado de um patriotismo pueril em que a salvação da pátria parece depender do próximo troféu que poderá conquistar ou recorde que conseguirá bater... Convenhamos que é esperar demais de Ronaldo e exigir muito pouco à nossa identidade colectiva.

quinta-feira, novembro 27, 2014

Ver + ouvir:
Acollective , BreakApart



Um teledisco a explorar relações com capas icónicas da cultura pop/rock. De Freddie Mercury e Eurythmics a Laurie Anderson e Frank Zappa, passando pelos Funkadelic ou Bruce Springsteen, entre muitos mais. A canção é apenas ok.

As time goes by...


Se bem que muito do discurso que se tem feito (e fará) sobre o novo filme de Richard Linklater vá concentrar atenções no facto de ter sido criado ao longo de uma dúzia de anos, reunindo regularmente o elenco e equipa técnica para criar uma história do tempo que passa, a verdade é que de modo algum Boyhood – que entre nós estreia com o subtítulo Momentos de Uma Vida – se esgota no dispositivo que o serve.

A sensação de passagem do tempo, que a rodagem efetuada ao longo desse período acaba por traduzir com um sentido de realismo que os corpos tão naturalmente espelham não é o objeto, mas o contexto, no qual acompanhamos uma história familiar, no fundo nada mais senão a matéria de que são feitas algumas das mais notáveis ficções na escrita norte-americana (não tem sido essa a essência que tanto valoriza a aclamação dos romances de um Jonathan Franzen?)... E, assim sendo, era uma vez o jovem Mason (brilhantemente interpretado por Ellar Coltrane), a irmã, pais, amigos e mundo à sua volta, desde os dias em que o vão buscar à escola ao momento de chegada à Universidade... 

Como forma de captar relações com o tempo que passa, o filme integra sucessivas referências a grandes fenómenos da cultura popular que, como um calendário, ajudam assim a fixar relações que a história das personagens e o seu espaço desenvolve assim com o contexto maior no qual tudo acontece.

O tempo dá aqui às personagens uma rara hipótese para se definirem, talharem e, como todos nós, se adaptar e mudar.  O arco narrativo serve assim um olhar que não apenas serve o acompanhar do crescimento do protagonista, mas também daqueles que o rodeiam. A candura com que se acompanha o envelhecimento – de todos – contrasta saudavelmente com um tempo de satisfações rápidas e “likes” automáticos. A vida, apesar de tudo, é assim. Acontece a 24 horas por dia, 365 dias por ano (a cada quatro juntando mais um). E, mais que na trilogia “Before” do mesmo Linklater – onde uma noção semelhante de passagem do tempo se projetava em três episódios rodados num arco de 18 anos – aqui experimentamos, numa montagem cronologicamente arrumada, o sabor do tempo de uma forma tranquila, mas sempre irrepetível e sem volta atrás.



PS. Na era do fait divers rápido e fácil, abundam já listas de filmes que, como este, levaram “eternidades” a fazer, não notando essas listas que não se trata aqui de um intervalo de produção, mas sim um tempo de rodagem propositado. O tempo aqui não foi uma dificuldade enfrentada, mas um elemento tomado desde o início como condição necessária para a própria narrativa (e, claro, a produção do filme). Vale por isso a pena lembrar aqui um outro filme que – talvez pela sua dimensão “independente” – esteja a ficar sistematicamente arredado dessas listas. Trata-se de Tarnation, autorretrato de Jonathan Caouette, que junta elementos em Super 8, vídeo, fotografias e registos áudio captados ao longo de 20 anos para contar também uma história de vida. É necessariamente uma ideia muito diferente da que levou Linklater a Boyhood. Porque mais egocentrada, autobiográfica, mais perturbante e pessoal. Mas respira uma relação com o tempo que é igualmente invulgar.

Cante alentejano já é património
da humanidade


Depois do fado e da dieta mediterrânica, o cante alentejano é a terceira expressão cultural portuguesa a ser inscrita entre a lista do Património Imaterial da Humanidade da UNESCO.

Expressão musical que traduz uma relação com a terra e os espaços de trabalho, o cante alentejano nasceu de caminhadas feitas entre as aldeias e os espaços onde decorriam a monda o a ceifa.

Aqui a notícia, na edição online do DN
Podem ler aqui um artigo de Gonçalo Frota no Público

John Grant edita disco com orquestra da BBC
(e amanhã há concerto na Internet)


Um álbum duplo gravado ao vivo, que junta a voz e as canções de John Grant ao som da BBC Philharmonic Orchestra, é um dos grandes lançamentos da próxima semana. O disco, a editar pela Bella Union, é assim o retrato de uma digressão conjunta do cantor com esta orquestra da rádio pública do Reino Unido e que se conclui este fim de semana com concertos em Edimburgo e Londres (este último no domingo, no Royal Albert Hall).

Amanhã John Grant e a BBC Philharmonic Orchestra atuam numa sala em Gateshead, pequena cidade no nordeste do Reino Unido. O concerto terá transmissão em direto através da Internet.

Podem acompanhar o concerto aqui.

Para os interessados, aqui fica o alinhamento do disco ao vivo:

CD1: It Doesn't Matter To Him, Sigourney Weaver, Vietnam, Marz, Fireflies, Where Dreams Go To Die, Carame e Glacier.

CD2: T C & Honeybear, It's Easier, GMF, Pale Green Ghosts, Outer Space, You Don't Have To, Drug e Queen of Denmark.


Cinefiesta 2014 anuncia programa


Niño (na foto), de Daniel Monzón, é o filme de abertura do CineFiesta 2014 e passa hoje, pelas 21.30 no Cinema São Jorge (Lisboa), em sessão que conta com a presença do realizador. O filme, estreado em Espanha em agosto deste ano, é um thriller com vitaminas de contrabando e tráfico, que tem o estreito Gibraltar como cenário. 

Outra das convidadas da edição deste ano do CineFista é a atriz Nerea Barros, que estará em Lisboa para falar da sua participação em La Isla Mínima, o mais recente filme de Alberto Rodriguez, que conquistou este ano no Festival de San Sebastián os prémios de Melhor Fotografia (Alex Catalán) e a Concha de Prata para Melhor Actor (Javier Gutiérrez).

A programação do CineFiesta 2014 inclui ainda, dia 6, às 21h30, na Cinemateca Portuguesa, um filme-concerto no qual o músico e compositor catalão Jordi Sabatés interpreta obras do realizador Segundo de Chomón. No Porto a programação faz-se este ano essencialmente com uma mostra de documentários.

A Mostra de Cinema Espanhol - ou seja, o CineFiesta - decorre este ano entre os dias 4 e 9 de dezembro, no Porto e Lisboa.

Veja aqui o programa completo:

LISBOA
Dia 4 de dezembro
21h30 – El Niño, de Daniel Monzón (Cinema S. Jorge)
21h30 - Dos Memorias, de Jorge Semprún (Cinemateca Portuguesa)
Dia 5 de dezembro
19h30 – Vivir Es Fácil Com Los Ojos Cerrados, de David Trueba (Cinema S. Jorge)
21h30 - Campanadas a Media Noche, de Orson Welles (Cinemateca Portuguesa)
21h45 – Musarañas, de Juanfer Andrés e Esteban Roel (Cinema S. Jorge)
Dia 6 de dezembro
17h00 – Mama, Soy Un Zombie, de Beñat Beitia e Ricardo Ramón (Cinema S. Jorge)
21h30 – La Isla Mínima, de Alberto Rodríguez (Cinema S. Jorge)
21h30 - Filme-Concerto - Jordi Sabatés recria Segundo de Chomón (Cinemateca Portuguesa)

PORTO
Dia 4 de dezembro
18h00 - Vikingland, de Xurxo Chirro (Rivoli)
21h30 - Todos Vós Sodes Capitáns, de Oliver Laxe (Rivoli)

Dia 9 de dezembro
19h00 - Arraianos, de Eloy Enciso (Passos Manuel)
22h30 - Costa da Morte, de Lois Patiño (Passos Manuel)

Para ouvir: obras de Johnny Greenwood
em concerto no Albert Hall de Manchester

Há cerca de um mês o compositor Johnny Grennwood (um dos guitarristas dos Radiohead) apresentou um concerto com obras suas no Albert Hall de Manchester. Acompanhado pela London Contemporary Orchestra apresentou algumas das composições que assinou para cinema, chamou a participação dos presentes à interpretação de Self Portrait With Seven Fingers (cada um na sala podendo contribuir com o respetivo telemóvel) e estreou ainda uma nova peça.

Podem ver aqui o concerto, que nos próximos dias estará a passar em loop na Boiler Room.

Para ler: um olhar
pelo novo filme de Tim Burton


Há já algum tempo que não vemos Tim Burton a dar-nos obras do calibre dos filmes que o colocaram no mapa das atenções entre finais dos oitentas e os anos noventa. E atenção que Frankenweenie, o melhor dos seus filmes mais recentes, não era senão um baralha e volta a dar (bem, de facto) de elementos de uma velha curta-metragem.

A sua legião de admiradores é vasta. E o reconhecimento da sua identidade autoral mereceu já mesmo uma inesquecível exposição no MoMA, mais tarde exibida na Cinemateca Francesa, em Paris (onde a vi).

Chegam contudo notícias encorajadoras. Um texto sobre o novo Big Eyes, acabado de publicar no Guardian, devolve-o ao contacto da equipa que escreveu Ed Wood e parece prometer um reencontro com temas que prometem um tratamento mais centrado na narrativa e definição de personagens que na cenografia, caracterização e guarda-roupa, onde parte da sua obra recente encontrou uma espécie de piloto-automático. E convenhamos que poder ter Tim Burton de regresso ao seu melhor é uma boa notícia.

Podem ler aqui o texto do Guardian.

Peanuts, 2015

Será com chancela da 20th Century Fox que os Peanuts chegarão à animação digital — e em 3D. Comemorando o 65º aniversário da primeira publicação das respectivas histórias, The Peanuts Movie está agendado, nos EUA, para 6 de Novembro de 2015. O maravilhoso cartaz foi divulgado a 26 de Novembro, data de nascimento de Charles M. Schulz (1922-2000). E também já há um trailer.

quarta-feira, novembro 26, 2014

Uma caixa de muitas músicas

O mínimo que se pode dizer dos Caixa de Pandora é que o grupo sabe justificar as promessas mais ou menos enigmáticas da designação mitológica que escolheu — Rui Filipe (piano), Cindy Gonçalves (violino) e Sandra Martins (violoncelo) são exploradores de muitas paisagens musicais que, numa atitude didáctica, não temem integrar inspirações muito variadas.
No seu primeiro álbum, Teias de Seda, Caixa de Pandora propõe um leque de 16 temas que vão desde a "descrição" romanesca de Voo do Condor até ao intimismo suave de Deuses Menores, passando pelo apelo dançante (tango?) de um tema que dá pelo nome sugestivo de Meio Fado [tudo para escutar aqui em baixo]. Há neles o elegância ordenada de uma antiga música de câmara, metodicamente corrigida por um misto de ironia e distanciamento a que apetece chamar, muito simplesmente, pop. Tudo sem grandiosidades postiças, o que, nestes tempos difíceis, é também uma virtude a celebrar.

Steve Coogan & Rob Brydon

Por vezes, há filmes construídos a partir da cumplicidade essencial dos respectivos actores: é o caso de A Viagem a Itália, com Steve Coogan e Rob Brydon — este texto foi publicado no Diário de Notícias (20 Novembro), com o título 'Humor tele-cinematográfico'.

Em tempo de tanta ignorância atrevida em torno da história do cinema (é verdade: a memória dos filmes merece tanto respeito quanto as estatísticas do futebol!...), valerá a pena sublinhar que A Viagem a Itália nada tem a ver com o clássico Viagem em Itália (1954), de Roberto Rossellini, com Ingrid Bergman e George Sanders. O filme de Rossellini é uma das portas de entrada na modernidade cinematográfica, enquanto a proposta de Michael Winterbottom reflecte tão só uma conjuntura em que se valorizam algumas formas de “transposição” da televisão para o cinema.
Na origem do projecto está o impacto de uma série realizada por Michael Winterbottom para a BBC, The Trip (2010), com Steve Coogan e Rob Brydon a interpretar dois amigos que viajam pelo norte de Inglaterra, recolhendo informações para satisfazer uma encomenda que o primeiro aceitou: uma série de artigos sobre restaurantes para o jornal The Observer. Os episódios de The Trip foram montados numa longa-metragem para as salas de cinema, acabando por gerar uma nova série, The Trip to Italy (sendo a descoberta da gastronomia italiana o novo assunto jornalístico), agora também transformada em objecto cinematográfico.
Com resultados desiguais, mas envolvendo alguns interessantes riscos narrativos, Winterbottom tem explorado este ziguezague documentário/ficção — recordo, em particular, 9 Canções (2004), um hábil desafio a modelos correntes de abordagem da sexualidade. Desta vez, o essencial resulta da cumplicidade entre os protagonistas, num registo de permanente ironia que integra várias alusões sarcásticas ao meio artístico inglês (e também algumas divertidas imitações de actores muto conhecidos). O resultado tem tanto de bom humor como de esgotante auto-complacência.

Ver + ouvir:
The Decembrists, Make You Better



O novo teledisco dos The Decembrists simula a passagem por um programa de TV alemão, com apresentador na melhor escola Alô Alô. Vejam aqui as imagens.

Nick Cave e David Fonseca hoje no Nimas

Foto: N.G.
Sim, é verdade. Um estará no grande ecrã. O outro à frente dele. O que se passa é que estarei hoje, pelas 21.45, no Espaço Nimas, em Lisboa, para apresentar, juntamente com David Fonseca, o filme Nick Cave: 20.000 Dias na Terra.

Ian Forsyth e Jane Pollard são os realizadores de um filme que usa técnicas da ficção para contar uma história real. Uma história que é a de Nick Cave, que ele mesmo co-escreve e protagoniza, encenando memórias pessoais e profissionais num arco narrativo que se descreve ao longo de um dia. Convenhamos que nunca um filme olhou de forma tão original sobre a carreira e figura de um músico.

Novas edições:
The Voyeurs

“Rhubarb Rhubarb”
Heavenly Records
3 / 5

Uma nova geração de bandas indie com passaporte britânico e berço na segunda década do século começa a dar o ar da sua graça, para já parecendo mais coleções de referências que, propriamente, líderes de uma qualquer (eventual) nova mensagem. Apesar de se apresentarem como The Voyeurs, a banda de que hoje falamos já tinha editado um primeiro álbum há dois anos, então com o mais extenso nome Charlie Boyer and The Voyeurs, o que não surpreende dadas as evidentes ligações a memórias da primeira “família” CBGB que ali se evocava, de Jonathan Richman com os Modern Lovers aos Television, numa coleção de canções que contou, na cadeira da produção, com a presença de Ewdin Collins. Agora, com nome reduzido a The Voyeurs, e azimutes das atenções devolvidos a este lado do Atlântico, apresentam um segundo álbum que, mesmo longe da linha da frente dos acontecimentos mais interessantes que os terrenos pop/rock deram a colher em 2014, não deixa de ser uma coleção de canções que sabem bem saborear e adivinham mesmo agradáveis momentos frente a um palco. Entre ecos do glitter rock e uma reconhecida admiração pela “fase berlinense” de Iggy Pop, mas sem esquecer ocasionalmente a força inspiradora de um Syd Barrett, as canções de Rhubarb Rhubarb fazem do disco um docinho com sabor retro, que se serve entre ecos do pastiche e sinais de personalidade que fazem da carteira de formas revisitadas um corpo com evidente unidade. Há uma voz que sabe vestir heranças clássicas da teatralidade ao serviço do rock’n’roll (como, por exemplo, Bett Anderson também o fez em tempos nos melhores dias dos Suede), um saber na gestão de sonoridades (que nunca perdem a nitidez dos respetivos sabores) e uma vontade em talhar hinos pop/rock capazes de animar uma pequena multidão. Há canções sobre violência doméstica ou sobre o que fica depois de uma noitada, quando o dia começa a regressar. Há guitarras em regime elétrico fuzzy e mellotron. São ainda primeiros passos em busca de algo. Que arrumam, de forma mais certeira que no álbum anterior, as linhas pelas quais se querem coser. Agora falta ver até onde a inspiração os poderá levar em cenas dos próximos capítulos.

Chegou o trailer de 'Jurassic World'



Dois dias antes do previsto, eis que surge o trailer de Jurassic World, aquele que será o quarto filme da série Jurassic Park. Pelas sugestões do trailer estão aqui reunidos os "ingredientes" centrais que lançaram a ideia nos anos 90 - entre o livro de Michael Crichton e o filme de Steven Spielberg - e junta um dado novo: um dinossáurio geneticamente manipulado.

O filme estreia em julho de 2015.

Para ouvir: novo tema de James Blake



James Blake mantém firme a ideia de lançar alguns temas fora do quadro da obra que tem vindo a apresentar em álbum, expressando aqui desejos em explorar outros caminhos. Há algumas semanas apresentou, no seu programa na BBC, um tema novo. Chamou-lhe 200 Press porque apenas 200 cópias serão prensadas. O single surge a 8 de dezembro através da 1-800 Dinosaur, etiqueta do próprio James Blake. Estará disponível em vinil e em edição para download digital.

Podem ouvir aqui um excerto do tema.

Para ler: 'design' para cinema
em novo livro da Criterion

Um volume dedicado ao trabalho gráfico ao serviço do mercado home cinema é uma proposta lançada pela Criterion (sim, a mesma daquelas edições fabulosas em DVD). O New York Times escolheu algumas páginas do livro Criterion Designs, que junta as capas especiais que a companhia foi criando para as suas edições, e apresenta-as devidamente comentadas.

Podem ler (e ver) aqui esse artigo.

terça-feira, novembro 25, 2014

5 x Mike Nichols (2)


[ 1 ]

A perna de Anne Bancroft a enquadrar a figurinha incauta de Dustin Hoffman, com as vestes do seu baptismo universitário — afinal, o título original do filme é apenas The Graduate (1967), bastante mais contido que a "erotizada" versão portuguesa, A Primeira Noite — é uma imagem nuclear da iconografia sexual dos anos 60. Provavelmente, na filmografia de Mike Nichols será um dos filmes em que a sarcástica observação das atribulações de usos e costumes mais cede à facilidade do panfleto moral. Apesar disso — corrijo: precisamente por causa disso —, The Graduate mobilizou e espantou espectadores de todo o mundo pelo modo como a sua encenação de um flirt entre um jovem californiano (Hoffman, a criar a sua própria imagem de marca) e uma senhora de hábitos de imprudente ligeireza (Bancroft, genial como sempre) sabia condensar as euforias e angústias do seu tempo. Tudo pontuado pelas canções de Paul Simon e Art Garfunkel, incluindo esse verdadeiro hino em que se tornou Mrs. Robinson — cantaram-na assim, a 19 de Setembro de 1981, no célebre concerto do Central Park.

Dois filmes de Chaplin
em dezembro no Cinema Ideal


A partir de 11 de dezembro o Cinema Ideal (Lisboa) apresenta, em cópias digitais restauradas, dois dos mais importantes títulos da filmografia de Charlie Chaplin.

Realizados, escritos, produzidos e protagonizados pelo próprio Chaplin, os filmes O Garoto (no original The Kid), de 1921, e A Quimera do Ouro (The Gold Rush), de 1925, são assim duas importantes reposições a integrar o cartaz dos cinemas a tempo de férias do Natal.

Ver + ouvir:
She + Him, Stay Awhile



A dupla formada por Zooey Deschanel e M Ward apresenta mais um teledisco, este para anunciar novo álbum de originais a editar a 2 de dezembro. Aqui ficam as imagens.

Os meus 100 livros (3)

Michael Cunningham
‘As Horas’ (1998)

Entre os muitos livros de ficção que foram já escritos com livros e escritores como matéria prima, As Horas, de Michael Cunningham, ocupa um merecido lugar de destaque. O seu mais aclamado livro – venceu o Pulitzer, entre outras distinções – toma um livro como ponto de partida: o histórico Mrs. Dalloway, de Virginia Wolf. Mas do livro faz nascer três personagens que habitam uma narrativa que assim se projeta em três épocas. Em primeiro lugar a sua autora, Virginia Woolf. Depois uma leitora, que se entrega a estas páginas entre cenas do seu quotidiano na América de meados do século XX. Em terceiro lugar uma figura do nosso tempo, que parece uma encarnação da personagem criada por Virginia Woolf, embora habite um outro local numa outra época. E é num constante diálogo entre estes três tempos, que na verdade se cruzam porque há a escrita de Virginia Woolf a ligá-los, que nasce uma narrativa que, mesmo dispersa entre três cenários distintos, afinal respira o sentido de coesão de um corpo uno.

Colocando a ação dos três períodos no curso de um mesmo dia – algo que acontecia já no livro de Virginia Woolf que aqui é o claro ponto de partida – Michael Cunningham não só revisita o espaço de alguém que escreve um livro como o de quem o lê (e ali encontra fuga possível para um dia-a-dia vazio num tempo de silenciosa secundarização do papel da mulher na vida social) como depois projeta no tempo presente os ecos dessa ficção original, ao colocar na pele de uma mulher na Nova Iorque de finais do século XX, com um amigo doente com sida. Esta presença marcante de um escritor na medula de uma nova ficção seria retomada pelo próprio Michael Cunningham em Dias Exemplares, desta vez com Walt Whitman em foco. 

Adaptado pouco depois ao cinema por Stephen Daldry, com figuras como Nicole Kidman, Julianne Moore e Meryl Streep no elenco, As Horas assinalou a chegada ao mercado português da escrita de Michael Cunningham, abrindo portas às edições de títulos anteriores como Sangue do Meu Sangue e Uma Casa No Fim do Mundo. Desde As Horas todos os seus livros têm conhecido edição entre nós, salvo um pequeno volume dedicado a Provincetown, que na verdade não é uma ficção mas um exercício no espaço da chamada literatura de viagens. 

Do mesmo autor:
1990. Uma Casa no Fim do Mundo 
1994. Sangue do Meu Sangue
2005. Dias Exemplares

Novas edições:
Superfood

“Don’t Say That”
Infectious
2 / 5

E depois de fechado o capítulo do revivalismo dos 80s (o que não quer dizer que não apareça quem o faça, como ainda hoje há quem procure referências nos 50s, 60s ou 70s) agora o mapa coloca as ementas dos noventas à disposição dos interessados. Com berço em Manchester, os Superfood não querem enganar ninguém. E apontam os azimutes das linhas mestras do seu álbum de estreia não apenas aos muitos ecos do brit pop como a formas de diálogo entre os ritmos e as guitarras que teve na cidade um vórtice central de acontecimentos (ou a coisa não tivesse acabado conhecida como Madchester). Naquele que é o seu álbum de estreia, Don't Say That, o quarteto parece procurar reencontrar o clima de festim despreocupado com que então se vivia em tempos de vacas gordas. Abrem uma janela para o lado onde a atualidade informativa não parece lançar sombras e dedicam-se à construção de pequenos momentos de luz e farra, navegando entre várias marcas de referência do que foi a pop britânica para guitarras na primeira metade dos noventas. Apesar da competência instrumental, e mesmo tendo na canção que usa o nome da banda um belo momento, não há contudo aqui uma única composição do calibre daquelas que colocaram nomes como os Blur, Pulp, Stone Roses ou Suede no mapa da época que comporta as memórias que aqui dão vida a novos temas. Talvez num próximo disco, e com menos sede de pastiche, lá cheguem.

Para ouvir: um tema de Will Bulter



Está confirmada para 2015 a edição de um álbum do irmão do vocalista dos Arcade Fire. Aqui fica um primeiro aperitivo do que ali poderemos encontrar.

Para ler: o Spotify é a solução?

Uma reflexão sobre o serviço de streaming Spotify foi publicada na revista New Yorker. E parte de uma simples questão (com resposta ainda por concluir...): é o Spotify um amigo ou um inimigo da indústria musical. Esta é apenas uma das possíveis contribuições para pensar numa das grandes questões do momento nesta área.

Podem ler aqui o artigo.

segunda-feira, novembro 24, 2014

Ver + ouvir:
TV on The Radio, Happy Idiot



Já aqui tínhamos mostrado o lyric video. Agora é a vez do teledisco. Este é um dos temas do belíssimo novo álbum dos TV on The Radio.

Novas edições:
Röyksopp


“The Inevitable End”
Wall of Sound
3 / 5

Juntaram-se em Tromso (Noruega) em 1998. E estavam a editar o seu primeiro álbum no ano em que a indústria discográfica do seu país aproveitou uma boa conjugação de novas propostas (contando com nomes como os Kings of Convenience, Slowpho e Sondre Lerche, entre outros mais) para colocar a sua nova música no mapa das atenções. Lançado em 2001 o álbum Melody AM apresentou-nos os Röyksopp e, desde logo, uma forma de estar na música que caracterizaria o grosso de uma discografia que, no formato “tradicional” de álbum aparentemente agora conhece um ponto final com este The Inevitable End. Meses depois de um EP gravado em colaboração com a cantora sueca Robyn, o álbum substitui o que poderia ter sido um simples “best of” que resumisse quase década e meia de discos através de uma nova coleção de canções que, na verdade, acaba também por traduzir a síntese de uma relação clara com as electrónicas – em particular sob focos de diálogo com os domínios do electro – partilhando zonas de convívio quer entre a construção instrumental e a cação quer entre investidas mais claras sobre a pista de dança e momentos de melancolia para viver sem tanta agitação em volta. No fundo projetam-se aqui as linhas mestras que temas como Poor Leno, Remind Me ou Eple lançaram em 2001, promovendo relacionamentos com vozes convidadas, de Robyn (que repete Monument, numa nova e mais curta versão, a Jamie McDermott (dos Irrepressibles) que toma a seu cargo – por ocasiões em excesso, a meu gosto - os instantes de maior dramatismo e teatralidade do alinhamento (infelizmente sem fazer devido emprego do travão que deveria usar mais vezes). Nunca (apesar da focagem bem interessante de ideias em Senior, de 2010) os Röyksopp foram uma banda de grandes “álbuns”, ao disco de estreia – talvez pelo efeito cartão-de-visita – cabendo aquele que representa o seu maior feito neste formato (um “best of” de alinhamento bem pensado será uma coleção de belíssimos singles, sem dúvida). The Inevitable End é, mesmo sob uma ou outra perda de fulgor em alguns dos temas mais lentos, um álbum de ingredientes equilibrados e algumas belas canções (sobretudo as mais vitaminadas nos ritmos). Sabe-se que os dois músicos poderão continuar a fazer música juntos. Mas ao que parece não como Röyksopp e não neste formato “clássico”. A despedida faz-se agora com elegância e sem fugir ao que sempre nos mostraram.

Discos: os lançamentos desta semana


Hoje chega às lojas (mais as virtuais que as reais, é verdade) um novo disco de David Sylvian. Com o título There’s a light that enters houses with no other house in sight o disco não representa ainda o sucessor de Manafon, traduzindo na verdade mais um esforço coletivo projetado numa obra de grande fôlego na qual Sylvian colabora com o poeta Franz Wright, e conta ainda com contribuições de Christian Fennesz e John Tilbury. O disco surge em três versões, a primeira das quais (acompanhado por um livro) já entretanto esgotada, restando assim o mais “convencional” digipack e o lançamento digital.

Também hoje é lançada uma versão “definitiva” do álbum de estreia dos Frankie Goes To Hollywood. Lançado há 30 anos, Welcome To The Pleasuredome é evocado agora na caixa antológica Inside The Pleasuredome, uma reedição em vinil do álbum original, numa nova prensagem apresentada juntamente com ilustrações criadas por Lo Cole, que assinou as imagens da capa original. A caixa inclui ainda um conjunto de três discos em 10” com remisturas inéditas de Relax, Two Tribes e The Power of Love, juntamente com temas existentes no álbum. Há um livro de 48 páginas com imagens alusivas ao disco, textos de Paul Morrissey e fotos de John Stoddart e Peter Ashworth. Há ainda um DVD com os telediscos da época e misturas em 5.1 dos singles e faixas do álbum, e uma cassete de 90 minutos com remisturas de Relax, um flipbook com uma animação rara e um cartão de acesso a ficheiros em alta resolução destes conteúdos.

Terceira grande chamada de atenção desta semana para uma gravação integral dos Études para piano de Philip Glass, em interpretações de Maki Namekawa. Lançamento assegurado pela Orange Mountain Music, a editora do próprio compositor.

Também esta semana:

Work in Progress – Outtakes 1963 é mais uma coleção de gravações de estúdio dos Beatles em 1963 (e mais um lançamento que surge pela passagem ao domínio público dos materiais desta fase da carreira dos fab four). Dos Beatles surge ainda uma reedição em vinil das históricas antologias “vermelha” e “azul” assim como de 1 e Love.

Também esta semana são editadas as caixas The Velvet Underground (que junta em seis discos materiais alusivos ao terceiro álbum dos Velvet Underground), Love Has Many Faces: A Quartet, A Ballet Waiting To Be Danced, de Joni Mitchell, Cream 1966-1972 (dos Cream, naturalmente, com reedições em vinil) e The Polydor Years, que junta em CD e DVD parte da obra dos Moody Blues.

No departamento das reedições há que assinalar a chegada de um convite ao reencontro com a obra dos Jesus Jones, surgindo os seus discos de estúdio em versões com um CD que corresponde aos discos originais mais alguns temas adicionais, aos quais se junta um outro CD com temas de singles e máxis e ainda um DVD (com telediscos e atuações em televisões e em concerto) como extra. Os Public Enemy reeditam o clássico It Takes a Nation of Millions to Hold Us Back.

Entre nós chega às lojas uma edição que assinala os 20 anos de Viagens, álbum de estreia de Pedro Abrunhosa com os Bandemónio.

A caixa Original Album Series dedicada a Shirley Bassey junta os seus álbuns Something, Something Else, I Capricorn, And I Love You So e Never Never Never. Surge também uma caixa idêntica com cinco álbuns de Sheena Easton.

Nos terrenos do jazz destaca-se Hamburg 72, de Keith Jarrett (com Charlie Haden e Paul Motian).

Na área da música contemporânea apresenta-se uma edição que junta obras para percussão de Karlheinz Stockhausen. Sob o título Complete Early Percussion Works é um lançamento da Mode.

Outros lançamentos:
Bruce Springsteen – Winterlan 15th December 1978
dEUS – Selected Songs 1994-2014
Echo & The Bunnymen – Porcupine (hardback vinil)
Echo & The Bunnymen – Live In London
Fatboy Slim – The Sets (live at SMS)
Faust - Just
Gotan Project – Club Secreto
I Am Kloot – From Here To There
James Brown – The Singles Collection 1958-62
Kelis – Live in London
Nick Drake – A Treasury (vinil)
Visage – Fade to Grey (orchestral) (single)
Vários – Saint Etienne Presents Songs for a London Winter

Esta é uma seleção pessoal de alguns dos lançamentos desta semana.

Para ouvir: novo álbum ao vivo de Kelis

A cantora Kelis edita esta semana um disco ao vivo. O registo foi captado na Somerset House, em Londres, na digressão que se seguiu ao lançamento do seu mais recente disco de estúdio. Podem ouvir aqui Kelis in London na sua totalidade.

 Link aqui para audição no Soundcloud, via Guardian

Para ler: DocLisboa 2014 na Sight + Sound

A edição deste ano do DocLisboa em reportagem publicada no site oficial da revista de cinema britânica Sight and Sound.

Podem ler aqui o texto.

domingo, novembro 23, 2014

Marine Vacth de frente para a luz

O fotógrafo francês Arnaud Pyvka é autor de uma obra que se distingue por um "erro" fascinante: regra geral, ele fotografa os seus protagonistas aplicando-lhes um flash de frente, um pouco à maneira do amador menos informado que não pressente que, desse modo, poderá desfigurar desagradavelmente os seus eleitos... Enfim, nada é assim tão linear ou automático, e até mesmo a lei estética aparentemente mais sólida pode ser discutida. Uma prova eloquente da sofisticação do trabalho de Pyvka é o seu recente portfolio, encomendado pela revista Air France Madame — Marine Vacth, a notável protagonista de Jovem e Bela, de François Ozon, enfrenta a luz, literalmente, emergindo como personagem tão próxima quanto diáfana de uma nostalgia que é, de uma só vez, fotográfica e cinematográfica.

Beyoncé ou a arte dos fragmentos

Não é fácil: encenar o ritmo contagiante de uma performance musical, fragmentando obsessivamente as imagens, mas sem perder a consistência narrativa e a lógica do espectáculo. É o que consegue Beyoncé no teledisco de uma nova canção, 7/11, num misto de precisão e euforia — Blue Ivy Carter, a filha de Beyoncé e Jay-Z, aparece aos 58 segundos.

sábado, novembro 22, 2014

"Hunger Games" ou a ideia de franchise

O novo episódio de Hunger Games (A Revolta - Parte 1) arrasta a pergunta mais fria: que fazer com uma franchise cinematográfica? Ou ainda: como escapar à lógica do marketing mais alheado do gosto do cinema? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (20 Novembro), com o título 'O impasse de uma "franchise"'.

A continuação da saga futurista Hunger Games confirma que o conceito de franchise passou a dominar zonas importantes da produção cinematográfica — e também, logicamente, dos mercados. Na prática, vamos assistindo ao empobrecimento da noção clássica de “série” (ou serial). A “série” apresentava-se organizada a partir de uma linha narrativa consistente, determinante em todos os elementos factuais ou simbólicos. A franchise é, sobretudo, uma ideia de marketing — e convenhamos que os profissionais do marketing nem sempre se têm distinguido por gostos genuinamente cinéfilos (Steven Soderbergh acha mesmo que muitos deles, além de não terem o hábito de ver filmes, não gostam de cinema).
Que aconteceu, então, com Hunger Games? Algo que também já afectou (com resultados calamitosos) Harry Potter ou Twilight: a tentativa de prolongar a duração comercial da saga, dilatando para dois filmes aquilo que, inicialmente, estaria vocacionado para ser apenas um (A Revolta – Parte 2 está agendado para Novembro de 2015).
O resultado faz perder intensidade à premissa fundadora — os jogos entre jovens, encenados como um espectáculo cruel de reality TV —, reduzindo quase tudo a um confronto maniqueísta entre os “rebeldes” e o “Capitólio”. Claro que reencontramos algum excelente trabalho cenográfico, em particular na figuração dos destroços da guerra. No papel de Katniss Everdeen, Jennifer Lawrence volta também a mostrar os seus recursos dramáticos, não faltando alguns notáveis actores em papéis secundários, como Julianne Moore ou Philip Seymour Hoffman (num dos seus derradeiros trabalhos). Ainda assim, permanece uma sensação de impasse num cinema que, no plano artístico, ganharia em ser menos controlado pelos gabinetes dos executivos.

Nick Cave: memórias de 1978



Foi assim que Nick Cave se estreou em disco. Antes de mudar de nome para The Birthday Party, o grupo que lhe deu primeiros episódios de visibilidade surgiu originalmente num par de singles e um primeiro álbum editados sob o nome The Boys Next Door.

Este foi o primeiro single. Uma versão de These Boots Are Made For Walkin' um clássico de Lee Hazelwood que ganhou voz através da célebre primeira versão gravada por Nancy Sinatra. Em clima new wave, mas a anunciar alguma (saudável) inquietude, era assim NIck Cave, em 1978.


Hoje à noite no Espaço Nimas

A propósito de Nick Cave posso acrescentar aqui que estarei mais logo, pelas 21.45, juntamente com a Rita Redshoes, a apresentar a sessão da noite do filme Nick Cave: 20.000 Dias na Terra, no Espaço Nimas, em Lisboa.


Em conversa: Arto Lindsay ( 1 / 2 )

Foto: LEFFEST
Este ano Arto Lindsay lançou o álbum “Encyclopaedia of Arto”, uma antologia em formato de disco duplo que atravessa várias etapas da sua obra, junta um inédito e gravações ao vivo. O lançamento do disco foi acompanhado por uma digressão, cuja última data teve lugar em Lisboa. Em conversa que fiz para o catálogo do LEFFEST, o músico passa em revista memórias e ensaia algumas reflexões sobre o que pode ser a música do século XXI.

Se a sua família não tivesse ido para o Brasil nos anos 50 a sua música alguma vez teria tomado o sentido em que cresceu?
Eu acho que teria sido completamente diferente. Eu ouvi essa música [a do Brasil] quando estava a descobrir o que era a música como portadora de ideias e sensações e não uma mera diversão. Aquilo para mim chegava de uma maneira natural, não achava que fosse uma rutura. Achava aquilo radical... Para mim a música era assim.

Com que idade chegou ao Brasil?
Cheguei com três anos e fui embora aos 17. Cresci lá. 

E essa é a fase em que se forma o gosto...
Sim, e a minha mãe tocava piano muito bem. Gostava de Nat King Cole, de Debussy, de várias coisas boas. E quando ela chegou ao Brasil ficou fã de Dorival Caymmi. Lembro-me de ouvir João Gilberto em casa. O meu pai gostava de música americana de raiz. Gostava de blues, dessas coisas assim. Eu ouvia a música deles e também a que se tocava nas ruas. Eu cresci numa cidade bem pequena no interior de Pernambuco e a rádio tocava nos altifalantes em dias de feira. Então ouvia forró, Luiz Gonzaga e todas essas coisas assim. 

Tomou algum contacto nessa altura com a cultura juvenil que ia emergindo nos EUA e Reino Unido?
Íamos de vez em quando aos Estados Unidos e eu ouvia Beatles, Rolling Stones, coisas que passavam na rádio. E depois trazia de volta esses discos para Brasil. 

Ao regressar aos EUA foi-lhe fácil integrar-se no panorama de uma Nova Iorque que, então, vibrava em acontecimentos na área da música e outras artes?
Até no Brasil, antes de voltar, já ouvia de tudo. Jimi Hendrix, a música da Califórnia dos anos 60. Tudo isso chegava até mim. Quando fui para os EUA era uma continuação daquilo. Estava aqui a lembrar-me de outras coisa ainda... Uma das coisas que me marcaram foram os filmes do Straub, como a Crónica da Ana Madalena Bach... Assim como as peças iniciais do Robert Wilson. Todos esses trabalhos tinham uma duração muito longa. Então lembro-me dessa experiência de compreender que existia uma maneira diferente de ter a experiência do tempo. Quando fui para Nova Iorque eu absorvia tudo. Conheci música através de muitos concertos. Mas também comprava muitos discos. Jazz, música contemporânea, música de vários lugares do mundo. A gente comprava os discos, roubava os discos... Mas os discos eram muito baratos. Não tínhamos muito dinheiro mas gastávamos muito em discos. E cinema e peças... Nos primeiros anos em Nova Iorque absorvi muita coisa. 

O seu trabalho e de outros músicos naquela altura procurou ir além do punk. Havia um gosto por experimentar. 
Toda a gente achava que não valia a pena fazer as coisas se não fosse novo. Isso era subentendido. Isso veio de muitos lugares, até a música popular do brasil era muito inovadora. A função da arte em geral era entendida como sendo necessariamente inovadora, havia a ideia da vanguarda. Valorizávamos coisas que eram difíceis de achar e de compreender. E que nos testavam de alguma forma... Isso foi desaparecendo depois na cultura em geral mas havia a ideia de que você se compromete com a obra de arte e se mede por uma obra de arte. 

Havia na vossa música de então uma vontade de ir contra o que estava estabelecido?
Nos anos 70 em Nova Iorque a cultura popular geral era bastante pobre. Havia coisas a acontecer no cinema, na literatura, na arte em geral... Mas a cultura popular era muito pobre. Nós vivíamos fascinados pelos anos 30 e por diálogos criativos subtis... Gostávamos muito da soul music, de algumas coisas, mas o rock’n’roll em geral era muito pobre. Mas não pensávamos bem em ir contra. Pensávamos mais em ir além de... Não nos interessávamos pelas coisas que estavam a rolar, mas também não as rejeitávamos. Não era uma batalha contra isso. Muitas pessoas interpretaram o nosso movimento, o nosso momento ali, como sendo antagónico ao que estava a rolar. Mas não era. Era um desejo de ir além. De uma identificação com a arte mais difícil.

Quando regressa ao Brasil leva uma vivência musical diferente. Como viveu o reencontro com aquelas músicas entre as quais tinha crescido?
Eram uma coisa familiar. Aprendi muito sobre a cultura brasileira depois de deixar o Brasil. Comecei a escutar obsessivamente o João Gilberto, com saudade. E aprendi muita coisa. Fiquei amigo de poetas e artistas de Nova Iorque. Dividi um apartamento com o poeta baiano Waly Salomão, um contemporâneo amigo dos tropicalistas. Conheci e fiquei amigo do Hélio Oiticica. E com eles conheci o Julio Bressane, um cineasta muito interessante. Estas pessoas fizeram-me aprender muito sobre o Brasil fora do Brasil. Foi o Bressane quem me indicou o Cartola... Então quando voltei para o Brasil, de alguma forma eu era um classicista. E quando comecei a produzir discos uma das minhas preferências estilísticas era a simplificação... Quando comecei a produzir a música era muito dominada pelos sintetizadores, as primeiras caixas de ritmos. Eu achava aquilo muito mal feito. Eu simplifiquei. Juntava violões e percussões, com sons mais contemporâneos... Por aí...

(continua)

sexta-feira, novembro 21, 2014

Ken Takakura (1931 - 2014)

Actor muito popular do cinema japonês, também com diversas incursões na produção de Hollywood, Ken Takakura faleceu no dia 10 de Novembro — contava 83 anos.
Sobretudo ao longo dos anos 50/60/70, em filmes dramáticos (como Abashiri Prison, produção de 1965 dirigida por Teruo Ishii), Takakura impôs-se junto das audiências nipónicas como símbolo de um heroísmo capaz de superar os traumas da Segunda Guerra Mundial. A sua popularidade em filmes de guerra ou policiais viria a valer-lhe o epíteto de "Clint Eastwood japonês", tanto mais que, a partir de Assim Nasce um Herói/Too Late the Hero (1970), de Robert Aldrich, começou a surgir em algumas produções americanas. Nesse trajecto, dois momentos são decisivos na internacionalização do nome de Takakura: Yakuza (1974), de Sydney Pollack, e Chuva Negra [trailer], de Ridley Scott.


Em qualquer caso, manteve sempre uma intensa actividade na indústria do seu país, tendo a sua filmografia há muito superado uma centena de títulos. Mais recentemente, surgiu em Caminho Solitário (2005), coprodução China/Japão dirigida por Zhang Yimou. Várias vezes premiado pela Academia Japonesa de Cinema, recebeu na cerimónia de 2014, realizada a 7 de Março, uma distinção honorária.
[obrigado a Daniel Carrapa]
>>> Obituário em The Hollywood Reporter.

5 x Mike Nichols (1)

Perante a notícia da morte de Mike Nichols, não pudemos deixar de celebrar a sua invulgar agilidade e inteligência como director de actores: de Elizabeth Taylor a Philip Seymour Hoffman, passando por  Meryl Streep, Harrison Ford ou Julia Roberts, foram muitos os que conseguiram algumas das suas mais admiráveis interpretações em filmes por ele realizados. Por isso mesmo, mais do que nunca, importa recordar que as suas competências nesse domínio são indissociáveis do facto de Nichols ter começado por ser... actor (o que não invalida, como é óbvio, que a história do cinema esteja cheia de autores que, sem nunca terem representado, possuem idênticas capacidades).
Em parceria com Elaine May, Nichols foi mesmo um caso sério de popularidade na transição dos anos 50 para as muitas atribulações dos sixties. Na rádio, através do disco, em palco ou na televisão, May/Nichols impuseram um modelo de subtil humor em que o impecável sentido da palavra e do timing se combinava com uma atenção tão sarcástica quanto didáctica à evolução de usos e costumes — o seu LP An Evening with Mike Nichols and Elaine May (1961) foi distinguido com o Grammy de melhor álbum de comédia. Eis o sketch 'Mother and Son', notável exemplo televisivo do seu talento. 

'Duran Duran Unstaged' estreia
em sala a 5 de dezembro


O filme-concerto Duran Duran Unstaged, realizado por David Lynch, vai ter uma breve carreira em sala entre nós. Depois de ter conhecido primeiras exibições entre nós integrado na programação da edição deste ano do LEFFEST, o filme vai chegar a uma sala lisboeta (falta confirmar qual) entre os dias 5 e 6 de dezembro.

A 5 de dezembro o filme será também exibido no Porto, no quadro da programação do novo festival Porto / Post / Doc.

No dia 6 o filme surgirá ainda nos videoclubes portugueses e terá edição em DVD.

Podem ver aqui o trailer do filme.