sábado, novembro 22, 2014

Em conversa: Arto Lindsay ( 1 / 2 )

Foto: LEFFEST
Este ano Arto Lindsay lançou o álbum “Encyclopaedia of Arto”, uma antologia em formato de disco duplo que atravessa várias etapas da sua obra, junta um inédito e gravações ao vivo. O lançamento do disco foi acompanhado por uma digressão, cuja última data teve lugar em Lisboa. Em conversa que fiz para o catálogo do LEFFEST, o músico passa em revista memórias e ensaia algumas reflexões sobre o que pode ser a música do século XXI.

Se a sua família não tivesse ido para o Brasil nos anos 50 a sua música alguma vez teria tomado o sentido em que cresceu?
Eu acho que teria sido completamente diferente. Eu ouvi essa música [a do Brasil] quando estava a descobrir o que era a música como portadora de ideias e sensações e não uma mera diversão. Aquilo para mim chegava de uma maneira natural, não achava que fosse uma rutura. Achava aquilo radical... Para mim a música era assim.

Com que idade chegou ao Brasil?
Cheguei com três anos e fui embora aos 17. Cresci lá. 

E essa é a fase em que se forma o gosto...
Sim, e a minha mãe tocava piano muito bem. Gostava de Nat King Cole, de Debussy, de várias coisas boas. E quando ela chegou ao Brasil ficou fã de Dorival Caymmi. Lembro-me de ouvir João Gilberto em casa. O meu pai gostava de música americana de raiz. Gostava de blues, dessas coisas assim. Eu ouvia a música deles e também a que se tocava nas ruas. Eu cresci numa cidade bem pequena no interior de Pernambuco e a rádio tocava nos altifalantes em dias de feira. Então ouvia forró, Luiz Gonzaga e todas essas coisas assim. 

Tomou algum contacto nessa altura com a cultura juvenil que ia emergindo nos EUA e Reino Unido?
Íamos de vez em quando aos Estados Unidos e eu ouvia Beatles, Rolling Stones, coisas que passavam na rádio. E depois trazia de volta esses discos para Brasil. 

Ao regressar aos EUA foi-lhe fácil integrar-se no panorama de uma Nova Iorque que, então, vibrava em acontecimentos na área da música e outras artes?
Até no Brasil, antes de voltar, já ouvia de tudo. Jimi Hendrix, a música da Califórnia dos anos 60. Tudo isso chegava até mim. Quando fui para os EUA era uma continuação daquilo. Estava aqui a lembrar-me de outras coisa ainda... Uma das coisas que me marcaram foram os filmes do Straub, como a Crónica da Ana Madalena Bach... Assim como as peças iniciais do Robert Wilson. Todos esses trabalhos tinham uma duração muito longa. Então lembro-me dessa experiência de compreender que existia uma maneira diferente de ter a experiência do tempo. Quando fui para Nova Iorque eu absorvia tudo. Conheci música através de muitos concertos. Mas também comprava muitos discos. Jazz, música contemporânea, música de vários lugares do mundo. A gente comprava os discos, roubava os discos... Mas os discos eram muito baratos. Não tínhamos muito dinheiro mas gastávamos muito em discos. E cinema e peças... Nos primeiros anos em Nova Iorque absorvi muita coisa. 

O seu trabalho e de outros músicos naquela altura procurou ir além do punk. Havia um gosto por experimentar. 
Toda a gente achava que não valia a pena fazer as coisas se não fosse novo. Isso era subentendido. Isso veio de muitos lugares, até a música popular do brasil era muito inovadora. A função da arte em geral era entendida como sendo necessariamente inovadora, havia a ideia da vanguarda. Valorizávamos coisas que eram difíceis de achar e de compreender. E que nos testavam de alguma forma... Isso foi desaparecendo depois na cultura em geral mas havia a ideia de que você se compromete com a obra de arte e se mede por uma obra de arte. 

Havia na vossa música de então uma vontade de ir contra o que estava estabelecido?
Nos anos 70 em Nova Iorque a cultura popular geral era bastante pobre. Havia coisas a acontecer no cinema, na literatura, na arte em geral... Mas a cultura popular era muito pobre. Nós vivíamos fascinados pelos anos 30 e por diálogos criativos subtis... Gostávamos muito da soul music, de algumas coisas, mas o rock’n’roll em geral era muito pobre. Mas não pensávamos bem em ir contra. Pensávamos mais em ir além de... Não nos interessávamos pelas coisas que estavam a rolar, mas também não as rejeitávamos. Não era uma batalha contra isso. Muitas pessoas interpretaram o nosso movimento, o nosso momento ali, como sendo antagónico ao que estava a rolar. Mas não era. Era um desejo de ir além. De uma identificação com a arte mais difícil.

Quando regressa ao Brasil leva uma vivência musical diferente. Como viveu o reencontro com aquelas músicas entre as quais tinha crescido?
Eram uma coisa familiar. Aprendi muito sobre a cultura brasileira depois de deixar o Brasil. Comecei a escutar obsessivamente o João Gilberto, com saudade. E aprendi muita coisa. Fiquei amigo de poetas e artistas de Nova Iorque. Dividi um apartamento com o poeta baiano Waly Salomão, um contemporâneo amigo dos tropicalistas. Conheci e fiquei amigo do Hélio Oiticica. E com eles conheci o Julio Bressane, um cineasta muito interessante. Estas pessoas fizeram-me aprender muito sobre o Brasil fora do Brasil. Foi o Bressane quem me indicou o Cartola... Então quando voltei para o Brasil, de alguma forma eu era um classicista. E quando comecei a produzir discos uma das minhas preferências estilísticas era a simplificação... Quando comecei a produzir a música era muito dominada pelos sintetizadores, as primeiras caixas de ritmos. Eu achava aquilo muito mal feito. Eu simplifiquei. Juntava violões e percussões, com sons mais contemporâneos... Por aí...

(continua)