Clint Eastwood volta a dar mostras do seu gosto por certos universos musicais: inspirado num espectáculo da Broadway, Jersey Boys é o retrato íntimo das canções do grupo The Four Seasons — este texto foi publicado no Diário de Notícias (18 Setembro), com o título 'Clint Eastwood celebra a música de The Four Seasons'.
Para muitos espectadores, Clint Eastwood é uma figura que, como actor ou realizador, pertence a ambientes mais ou menos dramáticos e violentos. Desde os célebres westerns que rodou sob a direcção de Sergio Leone, com inevitável destaque para O Bom, o Mau e o Vilão (1966), até ao retrato de um veterano da guerra da Coreia que protagonizou em Gran Torino (2008), ele é encarado, antes de tudo o mais, como um “homem de acção”. Seja como for, a obra de Eastwood não pode ser separada de uma persistente atenção a certas formas de expressão musical, como o prova a sua mais recente realização, Jersey Boys, adaptando um espectáculo da Broadway, distinguido com um prémio Tony para melhor musical de 2005.
Afinal de contas, estamos a falar de alguém que dirigiu Bird (1988), com Forest Whitaker no papel de Charlie Parker, habitualmente reconhecido como uma das melhores biografias que já se fizeram sobre as figuras lendárias do jazz. Jersey Boys, escusado será dizê-lo, é bem diferente, mas parte de uma atitude semelhante: para Eastwood, trata-se de revisitar um universo musical com um lugar garantido no imaginário popular — neste caso, a trajectória de sucesso da banda The Four Seasons —, procurando expor o que está para além das aparências, sejam elas artísticas ou humanas.
De forma sugestiva, podemos dizer que The Four Seasons foram, na década de 60, uma “alternativa” aos Beatles e, de um modo geral, aos valores mais experimentais, ou mais provocatórios, da emergente cultura rock. Estamos, aliás, perante um retrato que liga o “tradicionalismo” do grupo a um contexto social muito particular: Belleville, pequena cidade no estado de New Jersey, no começo dos anos 50, é um universo em que Tommy DeVito (Vincent Piazza), futuro membro fundador de The Four Seasons, sustenta as suas divagações musicais graças à protecção que lhe é concedida por Gyp DeCarlo (Christopher Walken), “padrinho” da mafia local...
Desde esses tempos “heróicos” até à entrada oficial dos membros originais do grupo no panteão do rock, o Rock and Roll Hall of Fame, em 1990, Jersey Boys propõe um verdadeiro ziguezague temporal. A decisiva integração da voz de “falsetto” de Frankie Valli (John Lloyd Young) ou as convulsões decorrentes de uma atribulada gestão financeira fazem com que The Four Seasons sejam também o espelho de uma América a viver profundas transformações sociais e simbólicas, incluindo nos conceitos de entertainment. Por alguma razão, Eastwood tem tido o cuidado de dizer em várias intervenções públicas (nomeadamente numa entrevista no talk show de Jimmy Fallon) que não considera Jersey Boys um “musical” na tradição de Serenata à Chuva (1952), mas sim um filme em que a música surge motivada pela narrativa, pela época e, claro, pela actividade dos protagonistas.
Integrando alguns nomes do elenco original da Broadway, Jersey Boys acabou por surgir na trajectória do realizador como uma espécie de “compensação” para um outro filme também com fortes componentes musicais — um remake de Assim Nasce uma Estrela (1954), de George Cukor — que acabou por ficar pelo caminho; Beyoncé seria a protagonista, mas invocando incompatibilidades de calendário acabou se afastar do projecto. O certo é que, depois de Jersey Boys, Eastwood tem já um novo filme, um drama de guerra intitulado American Sniper, em fase de pós-produção — deverá chegar às salas americanas nos últimos dias de Dezembro, de modo a poder candidatar-se às nomeações para os próximos Oscars.