domingo, março 16, 2014

Lou Reed em quatro álbuns (4)

Este texto é um excerto de um artigo sobre Lou Reed publicado em inícios de janeiro no suplemento Q. do DN com o título: O legado imortal do poeta da cultura rock'n'roll.
A liberdade que teve para criar Berlin seria compensada (à editora) pelas vendas (bem mais substanciais) de Rock and Roll Animal. Não se tratava exatamente de um alter ego como os que Bowie estava a começar a criar, mas era uma figura meditada, e ganhou forma nesse disco, com alinhamento nascido de um concerto gravado em dezembro de 1973 em Nova Iorque e do qual surgiria ainda um segundo álbum, Lou Reed Live, que editaria em 1975. Por ambos passavam ainda canções dos Velvet Underground. Entre os dois discos surge Sally Can’t Dance, um dos títulos menos interessantes da sua obra e, curiosamente, aquele que mais alto subiu na tabela de venda dos EUA (foi, de resto, o seu único top 10).

Mas o mapa das cedências não podia durar muito tempo. E antes de nos dar, em dezembro de 1975, o álbum Coney Island Baby (outra das suas obras-primas), onde se reflete um tempo de novo relacionamento pessoal, é num interregno entre coleções de novas canções que edita o mais extremado Metal Machine Music.

Lançado com o subtítulo The Amine β Ring, este foi um disco nascido para provocar. O manager de Lou Reed, Dennis Katz, foi uma das vozes que se levantaram contra o lançamento do disco. E por isso estava, como diz Peter Doggett, na lista negra do músico. Assim como estavam os elementos da hierarquia da editora, “a imprensa rock e todos os que tivessem menos de uma fé total na sua capacidade em sobreviver e manter as suas capacidades intactas sob tempestade e stress” .

Quaisquer tentativas de descrever o disco em mais que uma breve mão-cheia de palavras poderá resultar em incursões num terreno de certa forma abstrato, cada um devendo escolher até que ponto decida mergulhar entre um espaço feito de guitarras, distorção e ruídos. Há quem o aponte como um percussor do noise e até mesmo das estéticas industriais. Metal Machine Music é todavia um acontecimento bem distante das formas e destinos da cultura pop/rock, aproximando-se mais de um terreno de arte e ensaio, sendo contudo ilusória qualquer tentativa de o aproximar dos terrenos da arte concetual de um John Cage ou outras figuras da música da segunda metade do século XX. Visionário ou ato de mera provocação? Marcante ou inconsequente? Pertinente ou apenas uma farsa? Refletido ou aleatório? Muito já se disse, mas acredito que só ele poderia responder. Ou não... E basta lembrar o tom de agent provocateur com que ele mesmo falava da letra de Satellite of Love para entendermos que a dúvida era, talvez, a única certeza maior de Metal Machine Music. Sendo contudo certo que o disco representou uma ousadia enorme, como poucos fizeram na história da música popular.

Em julho, depois de uma etapa de uma digressão na Oceania, Lou Reed regressaria a Nova Iorque para defender o álbum, usando frequentemente referências à música erudita no seu discurso. Coney Island Baby, que surgiria já sob novo management, representa o final de um primeiro período na RCA Records, encetando uma ligação à Arista (que ao assinar Patti Smith em 1975 se tornava um dos faróis da modernidade rock) pela qual edita, entre outros, Street Hassle (1978) e The Bells (1979). Regressaria à RCA nos anos 80, para aí lançar o notável Blue Mask (1982) e os igualmente recomendáveis Legendary Hearts (1983), New Sensations (1984) e Mistrial (1986). Ao que se seguiu um acordo com a Sire Records, da qual não se afastou, pela qual editou três dos seus melhores discos. O primeiro, em 1989, e de título New York, assinalava uma celebração da vivência da cidade que o fez um poeta da idade rock’n’roll. O terceiro, em 2003, foi The Raven, uma abordagem à escrita de Edgar Allan Poe que contou com colaboradores como Antony Hegarty ou um reencontro com David Bowie. Pelo caminho surgiria, em 1990, Songs for Drella, um ciclo elegíaco em memória de Andy Warhol (falecido em 1987) que voltou a juntar Lou Reed e John Cale.

Os seus últimos discos foram uma coleção de música meditativa em Hudson River Wind Meditations (2007) e uma colaboração com os Metallica em Lulu (2011). Na semana em que nos deixou, em finais de outubro do ano passado, Transformer regressou a lugares de destaque nas tabelas de venda das lojas digitais. O álbum de estreia dos Velvet, New York e Berlin estiveram em destaque. A adesão a um best of deu conta da amplitude da obra. As revistas de música recordara-no. E, entretanto, o mapa das reedições começou já a celebrar o seu legado. Em vida, só uma vez um álbum seu chegou ao top ten americano. E apenas Berlin e Magic and Loss atingiram este mesmo patamar no Reino Unido. Nos EUA o seu single mais popular não subiu além do número 16 (foi Walk on the Wild Side, claro)... Quem disse que são os resultados nas tabelas de vendas que fazem o estatuto de popularidade de um músico. No caso de Lou Reed, os números não falam por si. Fala a obra. Falam as canções. Fala o legado. E o muito que o mundo (o que faz música e o que a escuta) dele herdou.