I - Esta fotografia refere-se a um encontro do líder da Igreja Católica com pessoas sem abrigo (Roma, 04-10-13). É uma imagem que poderia resumir o impacto mediático e ideológico, numa palavra, cultural, do Papa Francisco em 2013: alguém que arriscou explorar o exterior da sua própria pose institucional, abrindo a possibilidade de um contacto com o mundo que, de uma maneira ou de outra, lhe devolve a intensidade própria de uma presença visceralmente física.
II - Não é fácil encontrar um espaço para falar sobre isto, e pensar com isto, quanto mais não seja porque o aquário mediático em que vivemos, dominado por um jornalismo que enaltece o conflito e dispensa a reflexão, nos empurra quase sempre para as formas do mais cínico maniqueísmo: o Papa não passaria de um índice de natureza "clubista" que fala para os seus adeptos, só podendo desmobilizar os outros... Acima de tudo, não é fácil sustentar a ideia (criativa!) segundo a qual o arauto de uma fé, seja ela qual for, pode falar para todos os que não se reconhecem nos seus axiomas. Na revista Time — que escolheu Francisco como Personalidade do Ano — Nancy Gibbs destaca isso mesmo, recordando, por exemplo, que o Papa declarou que Deus “nos redimiu a todos nós… e não apenas aos católicos. A toda a gente, inclusive os ateus.”
III - Com o triunfo da ideologia televisiva do Big Brother — sinistra praga cultural que, um pouco por toda a parte, os agentes políticos (e religiosos, hélas!) recusam enfrentar —, o ser humano passou a ser todos os dias apresentado e representado como objecto descartável, com as suas emoções e a sua sexualidade a serem promovidas como meros índices de irrisão e "divertimento". Depararmos com um Papa que, num gesto de sugestivo simbolismo, aceita descer à Terra e, pelo menos, reconhecer as dores incrustadas no quotidiano não é, por certo, o mesmo que purificar, muito menos rasurar, dois mil anos de história da Igreja; aliás, seria precipitado avaliar Francisco como um homem de rupturas — Gibbs recorda, sensatamente, que nenhuma das suas posições faz dele um "liberal" [veja-se, a propósito, o video em que a Time, através de Howard Chua-Eoan, justifica a sua escolha de Personalidade do Ano]. Acontece que, nestes tempos difíceis, uma figura de tamanho poder que proclama "discutam menos, concretizem mais" é alguém a quem, no mínimo, importa reconhecer alguma abertura à pluralidade deste mundo — ou, talvez, à inusitada humanidade da vida material.