sábado, dezembro 21, 2013

Karina, Godard e os outros

Made in USA (1966)
Uma caixa de DVD, com seis títulos de Jean-Luc Godard rodados entre 1961 e 1966. E um rosto emblemático: Anna Karina — este texto foi publicado no Diário de Notícias (15 Dezembro), com o título 'Anna Karina entre os deuses e os homens'.

No clássico O Desprezo (1963), de Jean-Luc Godard, Fritz Lang interpreta o seu próprio papel, filmando nos cenários paradisíacos da ilha de Capri uma adaptação da Odisseia, de Homero. Na sua encenação das tensões entre arte e indústria, Godard coloca frente a frente Lang e o produtor americano Jeremy (Jerry) Prokosch, interpretado por Jack Palance. A certa altura, comentando as figuras mitológicas do filme dentro do filme, Prokosch proclama, num misto de exaltação e orgulho: “Gosto dos deuses. Gosto muito deles. Sei exactamente aquilo que sentem – exactamente.” Ao que Lang responde: Não se esqueça, Jerry. Não foram os deuses que criaram o homem. Foi o homem que criou os deuses.”
Podemos, talvez, sugerir que o cinema de Godard trabalha sobre uma duplicação simbólica desta relação entre os deuses e os homens: é verdade que o cinema nasceu para reproduzir a realidade, mas não é menos verdade que qualquer registo cinematográfico, em vez de “duplicar” seja o que for, amplia (ou reduz) as coordenadas da nossa experiência humana. Como se, na sua dimensão mais nobre, as imagens e os sons fossem instrumentos frágeis, mas essenciais, a partir dos quais discutimos o modo como habitamos o mundo e refazemos as suas coordenadas.
Tudo isso está presente no universo godardiano desde os tempos heróicos da Nova Vaga, agora reencontrados através de uma preciosa caixa de DVD com seis títulos realizados entre 1961 e 1966. São filmes dominados por Anna Karina (O Desprezo é mesmo o único em que não participa), nessa época casada com Godard, actriz de uma naturalidade de fascinante ambivalência que ele filmou, afinal, como se fosse a derradeira encarnação do conceito clássico de estrela.
A edição inclui alguns dos títulos mais famosos de Karina/Godard, a começar por esse símbolo do romantismo magoado da Nova Vaga que é Pedro o Louco (1965). Podemos também recordar Uma Mulher É uma Mulher (1961), radiosa homenagem aos musicais de Hollywood, O Soldado das Sombras (1963), exercício de filosofia política tendo a guerra da Argélia por pano de fundo, e Alphaville (1965), belíssima variação sobre matrizes da ficção científica, com Karina a contracenar com Eddie Constantine no papel do agente secreto Lemmy Caution (criado pelo escritor Peter Cheyney).
Em todo o caso, tendo em conta a sua escassa difusão, a grande raridade é Made in USA (1966), um “thriller” político em que a integração de referências do seu presente se apresenta tanto mais desconcertante quanto a acção se situa num “futuro próximo”. Aplicando uma delirante paleta de cores, é o filme em que o trabalho de Godard mais se aproxima dos valores visuais e de composição da Pop art. Foi também a derradeira longa-metragem em que ele filmou Karina – dir-se-ia uma despedida simbólica em que a actriz sai do real para entrar na utopia do próprio cinema. Sob o silêncio dos deuses.