Durante anos foi o próprio Stanley Kubrick quem não queria que o filme fosse visto. Conta-se mesmo que tentou adquirir as cópias que por aí andavam... Dizia-o ser “um exercício cinematográfico amador e desastrado, escrito por um poeta falhado, feito com a colaboração de alguns amigos, e um insólito incompetente, maçador e pretencioso”. Mas agora que Fear and Desire foi localizado, restaurado e editado em DVD e Bly-ray, permitam-me dizer que Kubrick (sem dúvida um dos maiores criadores da história do cinema) estava errado! Errado na forma de retratar um filme que, felizmente, pode agora integrar a sua filmografia sem que seja coisa distante que quase ninguém conhece.
Estreado no circuito de salas em 1953, mas saído de cena pouco depois e esquecido com o tempo, sobretudo quando filmes como The Killing, The Killer’s Kiss ou, mais ainda, (o genial) Paths of Glory davam conta de uma obra autoral em franca evolução.
Fear and Desire (que esta semana chega até nós nos formatos de DVD e Blu-ray como Medo e Desejo), é na verdade um impressionante cartão de visita e revela desde logo um saber no olhar e uma mestria na fotografia (ideia que o restauro vinca de forma bem evidente). Mais que amadorismo, preferia falar das naturais limitações que decorrem de um orçamento de dieta, da relativa inexperiência na realização e na dimensão minimalista da equipa e dos recursos disponíveis.
A ação (sem definir um tempo ou um lugar) decorre numa guerra imaginada, que pelo mapa que a dada altura cruza o ecrã, imaginamos na Europa. Mas, tal como Malick mais tarde tão bem exploraria no belíssimo A Barreira Invisível (baseado no romance homónimo de James Jones), o que aqui interessou a Kubrick não foram as dinâmicas de batalha ou a ação dos confrontos, mas as ideias que assombram aqueles que fazem a guerra. Ideias que são partilhadas pelos diálogos ou que escutamos nas vozes interiores de quatro soldados cujo avião caiu para lá das linhas inimigas, o inesperado encontro com uma mulher da região e a localização de um pequeno aeródromo “inimigo” permitindo a exploração dos quatro protagonistas com o “outro”, o medo e o desejo revelando-se (como o título tão bem sugere), seres maiores no mapa das preocupações e obsessões dos quatro soldados. Sessenta anos depois da estreia, o filme quase “perdido” de Kubrick acaba assim por ser um dos achados maiores de 2013. Não reescreve a sua história nem acrescenta pontos de vista inesperados à sua obra. Mas sublinha o processo de busca de uma identidade que, como poucos, Kubrick conseguiu levar bem longe.