Iniciámos na última semana no Sound + Vision a publicação de uma série de memórias pessoais sobre os espaços das lojas de discos. Hoje passam por aqui as palavras do Pedro Gonçalves, copywriter e crítico de música da Time Out. Ao Pedro um muito obrigado pela colaboração.
PS. Bem que me lembro das 'maratonas' dentro das grandes lojas em Oxford St, sempre a dividir o olhar entre o ponteiro do relógio a avançar para a hora marcada, as estantes de discos ainda por ver e a mão-cheia que se ia avolumando... Já agora, guardo também boas memórias da Rhythm Records, de onte foi sobretudo trazendo alguns singles ao longo dos anos...
Rhythm Records
(Camden High Street, Camden Town, Londres)
Escolher a cidade de Londres para recordar uma loja de discos desaparecida não é seguramente um acto de originalidade. Mas para quem, como eu, alimentou até dada altura da sua educação musical a ideia de que tudo o que era importante vinha de Inglaterra, a escolha é praticamente instantânea. (Vejamos: em Alta Fidelidade, o livro de Nick Hornby, a loja Championship Vinyl é em Londres; por insondáveis motivos, o filme mudou-a para Chicago).
Nunca fui, ao contrário de muitos melómanos que conheço e estimo, um rato de lojas de discos. Sempre as adorei (recordas-te, Nuno Galopim, de invasões bárbaras às lojas de Oxford Street em que marcávamos encontro para a saída algumas horas depois de entrarmos?), mas nunca cultivei grande fidelidade por nenhuma. Nem em Lisboa, muito menos em qualquer outra parte do mundo. Havendo objectos de desejo para venda, da Bimotor (Lisboa) à Virgin dos Campos Elíseos (Paris), dos armazéns do EuroClube (Lisboa) à feira no Electric Ballroom (Camden Town, Londres) onde comprei a edição original do single This Charming Man, dos Smiths, sempre valeu praticamente tudo.
Em Londres, fiz boa parte da vida de consumidor compulsivo de discos nos locais menos hip que se possa imaginar. Não era necessário ir para longe de Piccadilly Circus para saciar o apetite voraz por música nova (mais do que por música velha). Num curto raio de acção, que se estendia até Oxford Street, tínhamos a Tower Records, a Virgin Megastore e a recentemente muito propalada HMV. Várias, até. Enormes, com vários pisos, secções carregadas de vício, novidades de que em Portugal se ouvia remotamente falar. Mas depois houve o dia em que, em passeio numa Camden Town feita caricatura pós-pós-punk e berço e epicentro da britpop, entrei numa loja do lado esquerdo da Camden High Street, para quem vai do metro em direcção ao Lock Market.
A Rhythm Records ficava no local onde em tempos havia funcionado a Honest Jon's, lendária loja londrina entretanto instalada na Portobello Road (que deu também origem à editora de que Damon Albarn é cabecilha) e cuja história merece recomendação de leitura (James Lavelle, fundador da Mo'Wax, trabalhou ali na adolescência, por exemplo). Era uma pequena loja com piso térreo e cave. Cave, naturalmente. Um retiro separado do mundo por uma escada em caracol e milhares de discos, novos e em segunda mão, que em pleno apogeu da britpop a ignorava olimpicamente, ao contrário do que sucedia no piso da entrada.
Uma porta, uma pequena montra e um letreiro com o nome da loja faziam a ligação com o mundo exterior. No rés-do-chão encontrava-se sobretudo pop e rock, tudo quanto é novidade indie em destaque, a par da imensa herança cultural britânica, dos progressivos aos mods. Era o lado solar da Rhythm Records. Descendo as escadas, a música era outra. Era dirigida a outras curiosidades, algo que ainda vinha dos princípios dos fundadores da Honest Jon's – Dave Ryner, sócio da Honest Jon's, abriu a Rhythm Records depois de terminar a sociedade com Jon Clare em 1982. Dividia-se em espaços, como nichos de especialidade, onde entre outras coisas era possível mergulhar na apetecível História da música jamaicana, entre outras histórias mais obscuras.
Não posso dizer que fui grande financiador da Rhythm Records nos seus 20 anos de existência. Era ponto de paragem recorrente nas viagens, mas sobretudo fornecedor cirúrgico, ao contrário das tais lojas maiores de onde saíamos com pazadas de sacos. E, curiosamente, aquilo que me acorre logo à lembrança quando penso no que lá comprei não é um disco, mas um poster. Um poster de Body Movin', single dos Beastie Boys de 1998, de imaginário cinematográfico vintage. É esse poster, ainda hoje numa parede de minha casa, que ilustra esta prosa. Comprado no comércio tradicional de discos.