I. A agitação social em torno do caso Filipa Xavier [ver: Pépa Xavier e as redes sociais] seria apenas um anedota pueril e pouco feliz, não se desse o caso de constituir um sintoma brutal da degradação do nosso tecido social.
II. De facto, vale a pena referir que, sob a designação autoritária, supostamente indiscutível, de redes sociais, há quem considere que faz sentido gastar o seu tempo (e o tempo dos outros) insultando a autora do blog 'Fashion-à-Porter' porque ela manifestou o seu desejo de, em 2013, ter uma mala Chanel... Mais do que isso: monta-se todo um aparato “jornalístico” para expor na praça pública o facto de alguém ter manifestado o desejo de ter um objecto que custa um pouco mais de 3 mil euros.
III. Há várias maneiras de lidar com esta manifestação desse implacável Reino da Estupidez para cujos poderes, há muito tempo, nos alertou o genial Jorge de Sena (não, não está no Facebook...). A mais redutora, mas também a mais linear, é a contabilística. Por exemplo, se eu disser que, ao longo de 2013, adorava poder ir pelo menos três dias por mês a Londres para ir ao teatro, ver exposições e comprar livros... que alternativa me resta? Fazer mea culpa e reconhecer que nem mesmo o valor de várias malas Chanel poderia custear a minha arrogante pretensão? Ou anda por aí alguém que faça questão em ser ainda mais estúpido e considerar que as minhas escolhas, porque são “culturais”, merecem outra atenção? Desculpem lá, mas recuso semelhante protecção: uma belíssima mala Chanel é sempre mais digna que a miséria moralista.
IV. Depois, há a questão da própria quantia. Será que o facto de alguém desejar um objecto de 3 mil euros (se é que a noção de desejo não fica desqualificada face a uma mera vontade de consumo pessoal, corrente em qualquer ser humano) pode ser transformado em barómetro moral de toda uma conjuntura social? Será que a “crise” em que nos obrigam a viver – a ponto de muitos discursos político-económicos parecerem querer legitimar-se a partir da aplicação automática da palavra “crise” – passou a ser uma moral ditatorial a que está sujeito qualquer cidadão que se atreva a exprimir-se em euros?...
V. A conjuntura é tanto mais repressiva – em relação à simples possibilidade de pensar – quanto esta fúria moralista possui as mais discutíveis medidas de indignação. Assim, porque gostaria de poder gastar 3 mil euros, Filipa Xavier é difamada por uma multidão de vozes vingadoras... Isto no mesmo país em que alguns administradores das mais diversas instituições podem ser achincalhados, sem qualquer consideração sobre as qualidades do seu trabalho, por receberem um ordenado de 10 mil euros... Por sua vez, o seleccionador nacional de futebol recebe 64 mil euros por mês e não há uma voz, uma que seja, que venha ao menos perguntar que opções enquadram e justificam tal valor...
VI. Em boa verdade, sou dos que consideram normal que Paulo Bento ganhe 64 mil euros por mês (creio mesmo que, face aos seus congéneres europeus, recebe um ordenado miserável). E não vejo nenhuma razão, moral, política ou simbólica, para transformar o eventual consumo de Chanel por Filipa Teixeira num elemento de reflexão e/ou superação dos nossos dramas sociais e económicos. Julgar que as muito graves limitações do nosso tecido económico se resolvem impondo a Filipa Teixeira que renuncie à sua mala Chanel, eis uma ideia (?) que pode dar muitos polegares ao alto no Facebook, mas que apenas contribui para agravar a fulanização vingativa que começou pelo imaginário do futebol e, pelos vistos, vai contaminando todas as áreas das relações sociais.
VII. Há poucos anos, perante um filme (assaz convencional, a meu ver) sobre Coco Chanel (Coco Avant Chanel, com Audrey Tautou), o país da Internet mostrou o seu deslumbramento perante a elegância da personagem e a excelência do seu universo criativo. Agora, ficamos a saber que basta querer uma mala Chanel para se ser tratada como uma criminosa. Que os “amigos” das redes sociais peguem em 3 mil euros, ponham uma metralhadora nas mãos de Filipa Teixeira, lancem-na contra as barricadas do Mal e corrijam todos os males do mundo – é o mínimo que deles se espera.