domingo, maio 20, 2012

Nas entrelinhas de Shostakovich


Os dois concertos para piano de Shostakovich, e uma sonata para piano e violino fazem deste disco, protagonizado pelo pianista Alexandre Menlikov, uma das gravações obrigatórias de 2012.

Dmitri Shostakovich deverá ser um dos melhores exemplos de um compositor em cuja obra se cruzam os ecos de toda uma marcante tradição com o clima da modernidade quando o mundo descobria uma nova forma de pensar e ouvir a música. Juntamente com Mahler e Sibelius partilha o estatuto de maior sinfonista do século XX (Vaughan Williams e Prokofiev sendo também nomes a não descuidar nesse panorama) e foi autor de uma obra absolutamente “maior” entre os seus pares, mesmo sob o peso esmagador da repressão estalinista numa URSS que via a música (como a restante criação artística) como coisa que não morava necessariamente no espaço da liberdade criativa de cada um, mas antes peça numa agenda concreta devidamente discutida em comités. Shostakovich viveu episódios de confronto com o poder, a relação da sua música com a história política do seu país e do seu tempo sendo talvez das mais documentadas (e interessantes) do século passado.

As obras que encontramos neste novo disco (não só um dos melhores de 2012 até ao momento mas também uma das melhores entre as mais recentes gravações de peças do compositor) não representam contudo momentos de choque ou cedência na relação com o poder, mas uma delas (o Concerto para Piano Nº 2) traduz o sentido de ironia que, por vezes, habitava nas entrelinhas, levantando hipóteses de segundas leituras, como tantos outros criadores fizeram sob jugo repressivo. O pianista Alexandre Menlikov (que para a Harmonia Mundi tinha já gravado prelúdios e fugas de Shostakovich) escolhe aqui juntar os dois concertos para piano, completando o alinhamento com a Sonata para violino e piano op. 134 (com a violinista Isabelle Faust), traduzindo desde logo as escolhas as características de uma personalidade criativa de horizontes largos, atenta tanto às heranças da memória como ao experimentar de novos idiomas.

Os dois concertos são expressões de épocas distintas. O primeiro, estreado em 1933, reflete ainda os ecos de um tempo de excelência musical na vida moscovita. O booklet recorda um tempo em que compositores como Bartók ou Mihaud apresentavam ali as suas obras, um Wozzek era encenado em Leninegrado (hoje São Petesburgo) e os maestros Otto Klemperer ou Bruno Walter ali dirigiram concertos. Shostakovich criou o Concerto para Piano, Trompete e Orquestra tendo em conta esta plateia, revelando a música uma multidão de referencias (destinadas aos conhecedores) que passam por Beethoven, Bach ou Weber, os mais recentes Mahler, Rachmaninov e Prokofiev e ainda os espaços das heranças da música folk. Composto em 1957 para o 19º aniversário do seu filho Maxim – e estreado por ele mesmo na sua atuação de fim de curso no conservatório de Moscovo, o Concerto Para Piano Nº 2 foi tido pelo próprio Shostakovich como uma obra menor, visão que a interpretação absolutamente exemplar de Menlikov, acompanhado pela Mahler Chamber Orchestra aqui demonstra. O pianista fez mesmo questão de colocar esta obra na abertura do alinhamento do disco, dando justificada visibilidade a uma obra que, como explica o texto assinado pelo próprio, provocou a imaginação daqueles que viveram naquele lugar e naquele tempo. Simplesmente assombroso.