O romeno Cristian Mungiu [foto] é mesmo um grande cineasta. Depois de ter ganho a Palma de Ouro, em 2007, com 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias, sobre uma angustiada experiência em torno de um aborto clandestino, está de volta a Cannes com um filme que confirma a sua capacidade para colocar em cena os limites da própria experiência humana, reencaminhando a transcendência para o domínio austero e perturbante das coisas concretas do dia a dia — chama-se Para Além das Colinas (título original: Dupa Dealuri) e nele se encena a ligação de duas jovens enredadas nos rituais repressivos de um convento Ortodoxo perdido numa zona rural da Roménia.
A força do trabalho de Mungiu provém, antes do mais, da sua resistência a qualquer formatação banalmente televisiva. Não se trata, assim, de abordar os "desvios" da religião nem de especular sobre a "(des)crença" seja de quem for. Nada disso: Para Além das Colinas é um filme seco, austero e directo sobre uma conjuntura fechada em que a administração dos que gerem os destinos dos outros se transforma em mecanismo de destruição de identidades. Mais ainda: Mungiu consegue deixar uma sensação de parábola sobre o presente do seu país sem nunca sobrecarregar o seu filme com excessos simbólicos ou moralistas. Algo de semelhante se poderá dizer, aliás, sobre A Caça (Jagten), do dinamarquês Thomas Vinterberg, também elaborado a partir de uma "temática" muito forte: o alegado abuso de uma criança por um dos seus professores. Sendo o próprio enigma policial resolvido relativamente cedo, Vinterberg filma antes o modo como um colectivo (de famílias, tendencialmente social) recebe a notícia: A Caça é menos sobre a vulnerabilidade das crianças e mais sobre todo um imaginário mediático, sustentado pelos adultos, em que as crianças já não têm direito a viver a não ser como vítimas potenciais. Escusado será dizer que são ambos filmes genuinamente polémicos — no sentido em que convidam ao pensamento. Esperemos que o mercado português os revele proximamente.