Charlotte Gainsbourg e Willem Dafoe são personagens humanas ou fantasmas de uma ideia de humanidade? Representam uma ficção sobre os limites mais drásticos das relações homem/mulher ou estão a viver o derradeiro estertor de uma determinada ideia de ficção? Em termos singelos, podemos dizer que Antichrist, de Lars von Trier, é um dos acontecimentos mais radicais, e também mais perturbantes, do 62º Festival de Cannes.
Mas como descrever este filme? Será muito fácil fazê-lo através dos métodos típicos de "telejornal": fala-se em "violência", cita-se uma cena "escabrosa", fala-se outra vez em "violência" e usa-se a palavra "polémica" (evitando sempre tentar pensar os temas e raízes dessa mesma polémica)... Por isso mesmo, para combater a facilidade dos tempos, neste primeiro momento de confronto com Antichrist, importa, pelo menos, tentar dizer que esta história é vivida por um par (Charlotte Gainsbourg/Willem Dafoe) que perdeu o seu pequeno filho num acidente caseiro. Digamos que é uma história que coloca em jogo três vectores essenciais:
1) - trata-se de filmar a pulsão sexual para além das ilusões hedonistas do nosso consumo, porventura pensando naquela sugestão melancólica que perpassa por alguns escritos de Freud; a saber: que algo na pulsão sexual trabalha para a sua própria insatisfação.
2) - este é um filme sobre um drástico abalo do imaginário sexual, agora determinado por uma personagem feminina que, para além de todas as ilusões românticas do século XIX e de todas as racionalizações feministas do século XX, vem proclamar a violência sem nome da sua sexualidade.
3) - a brutalidade física, espiritual e simbólica que atravessa todo o filme está muito longe de se esgotar num qualquer revivalismo do género de terror: o que aqui se celebra é o retorno da fábula pura e dura, em contacto permanente com a nitidez indizível da morte.
Perante tão prodigioso objecto de cinema, fiquemos, para já, com algumas imagens (e seus incríveis sons).