sábado, janeiro 24, 2009

Como (não) passam as ideias?

1. Um dos fenómenos mais desconcertantes da blogosfera é o facto de a sobrecarga de informação não produzir, necessariamente, maior rigor e um conhecimento mais exigente. Acabo de deparar com um exemplo esclarecedor.
Ao efectuar uma pesquisa relacionada com Woody Allen e o seu filme Vicky Cristina Barcelona, deparei com um blog, Cinema Notebook (assinado com o pseudónimo "Knoxville"), em que está disponível um post intitulado "Frases que enervam (I)". Nele são citados dois fragmentos de duas intervenções críticas: uma de Vasco Câmara, no Público, sobre o filme A Troca, de Clint Eastwood; outra de mim próprio, remetendo para o Cartaz de Cinema da SIC Notícias, precisamente sobre Vicky Cristina Barcelona.

2. Supor que os "nervos" seja de quem for constituem um pretexto interessante para propagar o amor pelo cinema é uma noção que me ultrapassa (e tanto mais que o blog adopta como lema a sugestiva expressão "Cinema, com amor!"). Em todo o caso, o que é desconcertante, insisto, é a dificuldade de, simplesmente, fazer passar o que, mal ou bem, se pensa ou tenta pensar.
Entenda-se: nunca encarei o que digo ou escrevo enquanto crítico de cinema profissional como produto de uma qualquer "verdade" intocável. Por definição, o espaço da crítica (de qualquer domínio artístico) é uma paisagem plena de diferenças e contradições — sendo essas diferenças e contradições aquilo que confere ao trabalho crítico algum lugar na dinâmica de diferenças e contradições dos próprios leitores/espectadores.

3. Que disse eu sobre Vicky Cristina Barcelona? Está no video do programa e pode escutar-se. Foi assim:

>>> ...digamos que ele [Woody Allen] continua perto de nós [na Europa] e nós continuamos a sentir que a América lhe faz falta. Ou seja, é um bocadinho desconcertante — porque, enfim, longe de mim dizer que Woody Allen se transformou num cineasta banal —, mas este filme é mais um em que sentimos que, no fundo, ele está a fazer variações sobre coisas que fez há 10, 15 ou mais anos, nos EUA...<<<

4. Ora, que está escrito no blog Cinema Notebook? É assim:

>>>João Lopes, crítico de cinema, na SIC Notícias, sobre "Vicky Christina Barcelona":

"Woody Allen transformou-se num realizador banal".<<<

5. Admito que o tom de diálogo que valorizamos no programa possa estar recheado de ambivalências, ou até de imprecisões, características de um discurso que privilegia a coloquialidade. Mas a expressão "longe de mim dizer que Woody Allen se transformou num cineasta banal", além de correcto português, significa que, mesmo com eventuais reticências a este filme (reticências discutíveis, por certo, não é isso que está em causa), não me passa pela cabeça — longe de mim — considerá-lo um cineasta banal.
O que é que isto tem a ver com: "Woody Allen transformou-se num realizador banal"?

6. O que me choca não é a diferença de opiniões — longe de mim considerar tal diferença como um valor negativo. O que me choca é que esta é uma lógica de indiferença, para mais susceptível de se propagar como um vírus, provocando a situação absurda de se ter que corrigir o que... nunca se disse.

7. Que fazemos na blogosfera? Que ideias temos para expor? E que relação queremos estabelecer com as ideias dos outros? Mais ainda: que atenção damos, realmente, às ideias dos outros?
O movimento das ideias nunca é fácil, uma vez que pressupõe, não apenas a capacidade de sustentar um discurso próprio e pessoal, mas o máximo de disponibilidade para lidar com o discurso do(s) outro(s). Quando qualquer discurso fica reduzido a uma caricatura sem consistência, perdemos todos.