segunda-feira, dezembro 03, 2007

Em conversa: Jean Michel Jarre (1)

Iniciamos hoje a publicação da versão integral de uma entrevista com o músico francês Jean Michel Jarre, que agora regressa aos escaparates com uma nova gravação do álbum Oxygéne, que assinala os 30 anos desse disco. A versão editada desta entrevista foi publicada no DN.

Como descobriu a música electrónica?
Frequentei primeiro o ensino clássico, passei depois por grupos de rock. E, através de um colega de liceu, entrei num grupo de pesquisa musical que dependia da televisão nacional, a ORTF, e que era dirigido pelo Pierre Schaeffer. Foi ele quem inventou a música concreta, a música electro-acústica. Essa experiência mudou a minha vida como artista. O meu professor explicou-me então que a música não era apenas feita de notas e de acordes, mas também de sons. E que a diferença entre o ruído e o som musical residia na mão do músico e na intenção artística do acto. Esta ideia mudou a música do século 20, e devemos-lhe isso a ele. Ele inventou a noção de sample, de loop, o delay, os sons rebobinados, os sons em ralenti, tudo o que entendemos como sound design e que hoje está na base da composição musical. Essas ideias vêem de França e dele. E não dos Estados Unidos, de Inglaterra...

Pierre Henry trabalhou com ele...
Sim, era seu acólito, mas não tinha essa vocação de investigador, quase universitário. Não tinha essa perspectiva científica, antes mais humanista.

Pierre Schaeffer tem, assim, um papel determinante na sua formação?
Sim. Mudou-me e com ele entendi o que queria fazer. Nessa época eu pintava. Estava muito próximo de uma certa abstracção lírica. Figuras como Jackson Pollock ou Pierre Soulages influenciaram-me bastante. E então encontrei um espaço de relação possível entre a música electro-acústica. A forma como misturava as frequências assemelhava-se a modos de misturar as cores. Não para fins realistas. Mas com vista à abstracção. Uma abstracção, para mim, contudo, mais concreta e até mais próxima do realismo que a figuração.

E como partiu daí para a música?
Fiquei obcecado com uma ideia de tentar ligar aquela música contemporânea, de laboratório, à música pop. E de encontrar, porque já privilegiava a melodia, encontrar pontes entre essas realidades. Isto acontece dez anos antes de Oxygene. Trabalhava com processos de transformação de sons... Fiz várias tentativas e editei até discos falhados.

Fez bandas sonoras...
Sim, fiz música para cinema. Produzi para vários artistas... No fundo foram trabalhos práticos em vários domínios. Mas num canto do meu coração, uma voz surgia já bem clara. Fiz então Oxigene perante uma espécie de indiferença total. Em casa, numa cozinha modificada, com um estúdio minimalista, o que era o oposto do politicamente correcto. Isto porque, nessa altura, a música “séria” fazia-se em estúdios de facto. O que mudou, claro... Trabalhei com um velho gravador de oito pistas. E já então pensava que, um dia, teria de o gravar de novo com um equipamento “a sério”... Quando a alta definição surgiu, há poucos anos, senti que era chegado o momento. E usei o 30º aniversário como pretexto para o fazer.

Nessa altura já os Kraftwerk, Walter Carlos, Tangerine Dream, entre outros, tinham lançado discos. Certamente escutou-os. Sentiu que essas músicas não eram o seu caminho?
Exactamente. Nessa época sentia um enorme respeito pelos trabalhos que iam surgindo à minha volta. Não havia Internet... A música pop era uma música de troca., mas a electrónica era ainda uma música de experimentação. Laboratorial. A Alemanha era a Alemanha, e a França era a França. Não havia muito contacto. Ouvia o que se fazia, mas sentia que se mantinham certos paradoxos e contradições na música electrónica. A primeira dessas contradições foi criada pelo Walter Carlos, com o Switched On Bach, que foi um êxito imediato nos Estados Unidos e em Inglaterra. Mas que projectou nas pessoas uma enorme ambiguidade sobre os sintetizadores. Os sintetizadores eram então apresentados como instrumentos “falsos”, capazes de imitar os sons do piano, dos violoncelos, por aí adiante... Passava-se assim ao lado das verdadeiras potencialidades dos sintetizadores e da sua capacidade de abertura a novos sons. Depois vieram os alemães. E deles veio uma noção de apologia da máquina. Abordavam a música electrónica de uma forma expressionista, quase mecânica. Os Kraftwerk, sobretudo, elevaram este conceito a um extremo (o que não impede que adore o que fizeram). Mas promoveram uma noção de música electrónica como algo que é frio, robotizado, desumanizado. Isso criou novas ambiguidades para a música electrónica. E dizia-se que era uma música fria, urbana, de desespero, era a metrópole...~

E para si?...
Para mim era o contrário. Estes eram os instrumentos mais sensuais e mais orgânicos que conheço. Podem ser abordados como quem faz culinária. E procurava fazer com eles uma música que não se baseava na repetição automática de eventos, mas antes na não repetição e, sobretudo, sem automatismo. Oxygene é, nesse aspecto, um disco diferente porque não há um som que se repita. Todas as sequências são feitas à mão, sem sequenciadores.
(continua)