domingo, dezembro 02, 2007

A culpa como castigo

Não são precisas muitas palavras, grandes orçamentos nem mesmo uma mão-cheia de "estrelas" para fazer um filme capaz de marcar o meio cinematográfico e ser, mesmo sob uma perspectiva algo abstracta, um reflexo de um lugar, uma geração, um tempo. Com um elenco essencialmente feito de actores não profissionais, recrutados via MySpace, com uns "magros" dois milhões de euros de orçamento e apenas 18 dias de rodagem, dividindo imagens entre uma câmara de Super 8 e uma de 35mm, Gus Van Sant fez de Paranoid Park um retrato actual de uma certa juventude apática, abandonada, sem aparente rumo, que nos últimos tempos tem ganho cada vez maior visibilidade no seu cinema. Na verdade, desde a sua estreia, em Mala Noche (1985), o cinema de Gus Van Sant mostra um particular cuidado no retratar da juventude. Este interesse ultrapassa inclusivamente a sua esfera de acção enquanto realizador, manifestando mesmo as suas opções enquanto "padrinho" de novos talentos - foi produtor das primeiras longas-metragens de Larry Clark (Kids) e Cam Archer (Wild Tigers I Have Known) - um reflexo desta mesma curiosidade. Nos filmes de Van Sant encontramos uma juventude alheada, frequentemente marginalizada, de poucas palavras. E como algumas personagens de filmes anteriores, o Alex, protagonista de Paranoid Park, pode ser, mais que uma figura em concreto, um paradigma de uma geração, num tempo, num lugar.

O filme é baseado no romance homónimo de Blake Nelson, publicado há cerca de um ano. Na verdade foi o escritor quem deu este texto a ler ao realizador, que se preparava para levar ao cinema um outro romance seu. Além disso e, como o próprio realizador já afirmou, o filme é também algo inspirado pelo Crime e Castigo de Dostoievski. Paranoid Park devolve Gus Van Sant à "sua" cidade, Portland, e à multidão de anónimos que a habitam e cujas vidas já encontrámos em outros momentos da sua obra. Em poucas palavras, esta é a história de um crime acidental. Alex (interpretado por Gavin Nevins) é um estudante liceal de 16 anos, filho de um lar à beira do divórcio, e cujo único interesse na vida parece ser andar de skate. Alex não é ainda um grande praticante, optando cautelosamente por andar sobre rodas perto de casa, o que o não impede de ir com frequência ver outros skaters, em acção, no desolado Paranoid Park, construido pelos seus "utentes" sob uma ponte, no centro da cidade.

Contado de forma fragmentada, usando frequentemente as caminhadas solitárias como expressão de uma solidão que atormenta uma vida alienada, e as palavras que escreve num diário como ganchos de realidade crua numa vida feita de outros pequenos nadas, o filme acompanha sobretudo a luta interior de Alex, confrontado com a culpa de um crime acidental numa noite, depois de uma passagem pelo parque de skaters... Nos últimos cinco anos o cinema de Gus Van Sant optou por um registo mais contemplativo que narrativo, mais sugestivo que factual, mais de silêncios que de palavras. Paranoid Park segue este mesmo destino, integrando, mais ainda que em Last Days ou Gerry, a música como veículo de expressão possível do que vai nas almas quase mudas que ali retrata. As canções sombrias de Elliott Smith, assim como as imagens, reais, de skaters e transeuntes (captadas em Super 8), são intromissões do espaço real no universo de ficção que se apresenta. Não como caução "realista" que assim justifique a ficção. Mas como marcas de uma realidade artística, actual, sem fronteiras concretas, antes híbrida, de que este cinema pode ser reflexo.
PS. Versão editada de texto originalmente publicado no DN