sábado, maio 23, 2020

"Shining", 40 anos

Quando começa o filme Shining [video], vemos o "carocha" amarelo da família Torrance a atravessar deslmubrantes paisagens, a caminho do Overlook Hotel... Bem sabemos que o cenário os irá acolher num inusitado misto de estranheza e violência. Em qualquer caso, da primeiríssima vez que vimos aquelas imagens não pudemos deixar de experimentar uma suave perturbação — como escreveu um crítico francês, toda aquela serenidade e beleza envolvente faz-nos sentir que "algo vai mal".
Assim é a obra-prima de Stanley Kubrick: uma viagem por terrenos familiares, literalmente, que nos confronta com o assombramento do ser e as convulsões da identidade humana. Dizer que a sua actualidade temática e simbólica não só não se perdeu, como se reforçou, eis uma cândida evidência. Shining teve a sua estreia no dia 23 de Maio de 1980 — faz hoje 40 anos.

sexta-feira, maio 22, 2020

Cannes: como defender o cinema?

Thierry Frémaux
O novo filme de Spike Lee não poderá estar em Cannes porque… não haverá Festival de Cannes. Para Thierry Frémaux, delegado-geral do certame, este é um bom momento para repensar o futuro do próprio cinema — este texto foi publicado no Diário de Notícias (16 Maio), com o título 'A política de Cannes'.

Durante e, por certo, após a pandemia, vale a pena tentar enunciar algumas ideias programáticas para defesa dos filmes. Entenda-se: não apenas medidas transitórias para lidar com os dramas gerados pelo confinamento, antes ideias que possam contribuir para esclarecer e reforçar o futuro do cinema.
Eis oito princípios possíveis: “1) Repensar os circuitos de financiamento. 2) Proteger os criadores, reforçando os direitos de autor. 3) Fazer com que as plataformas estrangeiras contribuam significativamente para o financiamento do cinema francês e europeu. 4) Negociar arduamente com os GAFA (Google + Apple + Facebook + Amazon) para que a utilização das obras seja correctamente remunerada e os impostos pagos. 5) Combater a pirataria que é um crime cultural. 6) Reinstalar programas de cinema na escola. 7) Reflectir com as televisões sobre as suas obrigações, e também os seus deveres, para que contribuam ainda mais para a produção de obras que não sejam unicamente pensadas para o horário nobre. 8) Adaptar a cronologia dos media ao século XXI, para que cinema e audiovisual coabitem no interesse de todos, sem excluir ninguém.”
A referência ao “cinema francês e europeu” permite deduzir de onde provêm tais linhas programáticas — de França, claro. Mas não de um qualquer programa político. Onde estão, afinal, os políticos europeus (incluindo os franceses, criadores de um elaborado sistema de protecção do seu cinema nacional) que tenham enunciado princípios deste teor, com a mesma clareza e convicção?
Cada leitor terá a sua resposta. Digamos apenas que a apresentação de tais princípios provém de um lugar emblemático no mundo global do cinema, envolvendo a complexidade dos seus circuitos financeiros e o esplendor do seu património mitológico. A saber: o Festival de Cannes. Mais exactamente, são palavras de Thierry Frémaux, delegado-geral do certame (também director do Instituto Lumière, em Lyon), em entrevista à revista L’Obs, publicada no dia 11 de maio.
A entrevista serviu, antes do mais, para dar uma notícia que os cinéfilos tinham pressentido como inevitável: depois de vários adiamentos, a 73ª edição dos Festival de Cannes, marcada para esta altura (12-23 maio), foi cancelada. Não haverá sequer uma “versão” online do certame, já que, segundo Frémaux, um festival serve para “estarmos juntos”, abrindo a cada filme apresentado “uma aventura no grande ecrã”.
Estranhamente (ou não…), as sugestões programáticas de Frémaux geraram um eco débil, para não dizer nulo. E, no entanto, não é todos os dias que lemos ou ouvimos alguém a resumir com tal precisão o labirinto de temas e interrogações em que, aqui e agora, os filmes existem (ou não existem…). Lembrando a especificidade artística do cinema e, por isso, a importância da defesa dos respectivos postos de trabalho, Frémaux evoca mesmo a noção de povo sem que isso se confunda com tantas e tão fúteis formas de demagogia: “Temos de dar provas de pedagogia popular para que todos se comprometam na salvaguarda daquilo que tem um preço e um valor.”
Nada disto, entenda-se também, arrasta qualquer maniqueísmo “cultural” que acabe por ceder à estupidez “política” segundo a qual se trata de salvar a “pureza” europeia da “impureza” do cinema dos EUA. Ficamos, aliás, a saber curiosas notícias sobre o novo filme de Spike Lee, Da 5 Bloods, centrado num grupo de afro-americanos, veteranos do Vietname, já com 70 anos feitos, que decidem regressar aos cenários da guerra para esclarecer algumas pontas soltas das suas próprias memórias…
Produzido pela Netflix, o filme seria uma das grandes revelações do festival deste ano (extra-concurso, uma vez que Spike Lee iria assumir a presidência do júri oficial). O que, além do mais, nos leva a supor que o diferendo Cannes/Netflix — decorrente da resistência da plataforma de streaming a estrear muitos dos seus filmes nas salas escuras e dos consequentes protestos dos exibidores franceses — poderá estar a evoluir de forma interessante, “sem excluir ninguém”.
Para já, sabemos que Da 5 Bloods estará disponível na Netflix a partir de 12 de junho. E que, mais do que nunca, a “pedagogia popular” de Cannes merece ser pensada. Com as consequências políticas que tal pensamento implica.

quinta-feira, maio 21, 2020

Roger Waters: "Mother" a preto e branco

Afinal, as tensões entre Roger Waters e David Gilmour não estão sanadas — é uma história longa, contrastada, nem sempre edificante, que desembocou agora num video de Waters, lembrando que Gilmour não é "dono" dos Pink Floyd e que ele, embora tendo saído da banda em 1985, não pode ser rasurado da sua história [notícia: Rolling Stone].
Conflitos à parte, Waters deu-nos agora uma das mais belas peças musicais deste nosso confinamento: uma versão de Mother — do álbum The Wall (1979) —, além do mais parecendo projectar os impasses emocionais da canção no nosso assombrado presente. A preto e branco.

Mother should I build the wall?
Mother should I run for President?
Mother should I trust the government?
Mother will they put me in the firing mine?


quarta-feira, maio 20, 2020

Qual a relação do TikTok
com a herança de Walt Disney?

Que pensaria Walt Disney do TikTok? Se as viagens no tempo não acontecessem apenas nos filmes, seria interessante saber como o criador do Rato Mickey encararia as formas de grosseira manipulação a que, em nome da liberdade virtual, tem sido sujeita a sua querida personagem?
Eis algumas interrogações que se justificam face a uma curiosa e, por certo, sintomática notícia das esferas de poder dos grandes conglomerados mediáticos. A saber: Kevin Mayer, responsável pelo lançamento da plataforma de streaming Disney+, abandona a companhia de Mickey, Donald e Pluto para assumir as funções de CEO do TikTok, propriedade do conglomerado chinês ByteDance — pormenores nas páginas de The Hollywood Reporter.
É difícil encarar uma notícia deste teor como um banal efeito das dinâmicas do mercado de trabalho. Desde logo, porque nas altas esferas da Disney, Mayer terá sido recentemente preterido como possível sucessor de Bob Iger, em favor de Bob Chapek; depois, porque, para a ByteDance, se trata de consolidar a sua rapidíssima afirmação no mundo dos negócios, no sentido de contrariar também as especulações que, nos EUA, apontam o TikTok como um risco para a segurança nacional.
Em qualquer caso, o mais sintomático será o facto de, pelos vistos, ter deixado de haver diferença significativa (entenda-se: do ponto de vista da gestão administrativa) entre trabalhar com um património tão rico e diversificado como o que pertence à Disney e comandar uma aplicação de telemóvel que, no essencial, vive à custa dos filmes (?) de 15 segundos que milhões de pessoas colocam online para nos dar conta da sua arte de tropeçar em obstáculos caseiros ou de aplicar desodorizante nos sovacos...
Enfim, para Mayer, por certo o menos incomodado com especulações deste género, o nome "Disney" passou a ser apenas uma referência no seu currículo de sucesso. Mas seria mesmo interessante poder ouvir a opinião de Walt Disney, ele que idealizava um mundo em que "todos os nossos sonhos se pudessem tornar realidade" — era um mundo de negócios, sem dúvida, mas é duvidoso que o criador de Pinóquio e Fantasia estivesse a pensar em futilidades de 15 segundos.

terça-feira, maio 19, 2020

"Da 5 Bloods" / Spike Lee

Memórias e fantasmas da guerra do Vietname. Seja o que for, e como for, o novo filme de Spike Lee, o respectivo trailer possui uma energia contagiante — sem esquecer o impacto do poster: Da 5 Bloods estará na Netflix a partir do dia 12 de Junho.

segunda-feira, maio 18, 2020

Michel Piccoli (1925 - 2020)

HABEMUS PAPAM (2011), de Nanni Moretti
Actor de todas as transfigurações, símbolo da produção francesa ao longo de mais de meio século, o actor Michel Piccoli faleceu a 12 de Maio (a notícia só foi divulgada no dia 18), vítima de um acidente vascular cerebral — contava 94 anos.
Foi, de facto, um actor de muitas e impressionantes personagens. Mas não apenas no sentido da "caracterização". Mesmo quando essas personagens o projectavam das zonas mais obscuras do factor humano, Piccoli não renegava esse factor, antes o sublinhava sem temer expor as suas insolúveis contradições.

A GRANDE FARRA (1973), de Marco Ferreri [Instagram]
UM QUARTO NA CIDADE (1982), de Jacques Demy [Instagram]
HABEMUS PAPAM (2011), de Nanni Moretti [Instagram]
Com uma sólida experiência teatral (nunca abandonou os palcos), Piccoli possuía a arte rara de combinar a pertinência da pose com a requintada verbalização dos diálogos, nessa medida podendo funcionar com o mesmo à vontade no romanesco terminal de O Desprezo (1963), de Jean-Luc Godard [video: 5 minutos iniciais], na féerie musical de As Donzelas de Rochefort (1967), de Jacques Demy, ou na farsa trágica Vocês Ainda Não Viram Nada (2012), de Alain Resnais.


Passou pelo realismo onírico de Buñuel, por exemplo em Belle de Jour (1967) ou O Charme Discreto da Burguesia (1972). Foi várias vezes cúmplice do humor desconcertante de Manoel de Oliveira, incluindo nesse título emblemático, porque suavemente confessional, que é Vou para Casa (2001). Transfigurou-se para satisfazer a lógica experimental de Leos Carax, em Má Raça (1986).
Mesmo com os inevitáveis altos e baixos de uma carreira de mais de duas centenas de títulos, Piccoli nunca desmentiu a sua condição de actor enigmático, sendo especialmente fascinante observar a sua "naturalidade" quando, à sua volta, todas as coordenadas — dramáticas, morais e até temporais — se vão metodicamente desfazendo. Exemplo supremo de tal postura poderá ser Dillinger Morreu (1969), de Marco Ferreri, uma crónica da vida privada que se projecta num insólito surrealismo — filme de absoluta excepção, temática & formal, que a Net, silenciosamente, coloca à nossa disposição.


>>> Obituário no jornal de Le Monde.

domingo, maio 17, 2020

TikTok: 15 segundos de fama

Charli D'Amelio [TikTok]
Assim vai o mundo: Charli D’Amelio, 16 anos, é a principal vedeta da nova rede social TikTok; os seus dotes de dançarina, em videos de 15 segundos, valem-lhe mais de 50 milhões de seguidores — este texto foi publicado no Diário de Notícias (9 Maio), com o título 'O admirável mundo do TikTok'.

TikTok: eis a nova moda virtual. Apresenta-se como uma rede social para partilha de videos de pequena duração (cerca de 15 segundos, na maior parte dos casos). Concebida pela ByteDance, uma empresa da China especializada em tecnologia da Internet, foi lançada em 2016 no mercado chinês com a designação Douyin. Entretanto, generalizou-se como TikTok, sendo recordista de downloads para os telemóveis de sistema iOS. Números redondos: há 800 milhões de pessoas a usar regularmente o TikTok.
A dimensão do fenómeno justifica que lhe prestemos alguma atenção, tentando compreender a especificidade da sua linguagem. Não se trata, entenda-se, de atrair generalizações moralistas que simplifiquem a evidente pluralidade interna de tais fenómenos, nem de sugerir que há uma espécie de lugar virginal a partir do qual é possível observá-los (no plano pessoal, devo dizer que, em tempos de confinamento, abri duas contas de Instagram, sem que o facto me suscite qualquer queixa ou protesto).
Acontece que os modelos dominantes de “comunicação” que podemos encontrar no TikTok vêm reforçar duas linhas de força da nossa “sociabilidade” virtual: primeiro, a redução do protagonista a uma militante caricatura de si próprio; segundo, a resistência implícita a qualquer forma de duração que ultrapasse o efeito acelerado e efémero de um clip publicitário. Decididamente, tornou-se impossível partilhar com alguém o prazer de assistir a duas horas de um filme de Hitchcock… Tudo isto, importa acrescentar, através da integração de instrumentos de manipulação das imagens (sobreposições, variações de velocidade, etc.) que reduzem a pessoa a uma cobaia virtual, partilhável como coisa fútil e descartável.
O texto de apresentação (de origem brasileira) disponível em várias plataformas portuguesas é revelador: “TikTok é uma comunidade de videos global. Com TikTok criar videos curtos se tornou ainda mais fácil. Grave e edite seus próprios videos com nossos efeitos especiais, filtros, stickers e muito mais. Depois é só compartilhar com o mundo seu talento.”
Eis uma ideologia de “comunicação” que promove a mais grosseira das utopias: o utilizador pode cortar o cabelo, fingir-se ilusionista ou aplicar desodorizante nos sovacos (não estou a inventar) porque está a… “compartilhar com o mundo seu talento”. Com um efeito perverso: qualquer contemplação de imagens que implique mais do que uns breves segundos é desvalorizada, prevalecendo o princípio pueril segundo o qual as imagens já nem sequer servem para lidar com os contrastes do mundo em que vivemos — são meros atropelos caricaturais a que não se atribui qualquer pertinência cognitiva, muito menos estética. O TikTok apela, assim, ao desenraizamento do utilizador, definido apenas através da sua performance no… TikTok.
É verdade que há figuras muito populares do “entertainment”, de Jimmy Fallon e Stephen Colbert a Jennifer Lopez ou Selena Gomez, que já aderiram ao TikTok, induzindo muitas especulações sobre a capacidade de a aplicação vir a gerar receitas astronómicas. Por exemplo: o tema de capa da edição de 6 de maio de “The Hollywood Reporter” não é o novo filme de Tom Cruise (que, já agora, vai ser rodado em órbita, na International Space Station), mas o… TikTok.
O universo de vedetas criado pelo TikTok está longe de ser uma mera duplicação do que existe nos domínios tradicionais do espectáculo. Assim, Selena Gomez tem 18 milhões de seguidores, o que, convenhamos, é quase penoso face às proezas da actual líder das estatísticas do TikTok, com 54 milhões: é ela Charli D’Amelio, simpática e talentosa adolescente americana de Norwalk, Connecticut (completou 16 anos no dia 1 de maio), especialista na invenção de novos passos de dança, em bem dispostas fatias de 15 segundos.
Em diversos sites de informação sobre as atribulações deste nosso admirável mundo, verifico que, tal como outras figuras do TikTok, Charli D’Amelio é definida como “social media personality”. Moral da história: os circuitos virtuais já foram promovidos à condição de criadores de “personalidades”.

sábado, maio 16, 2020

Chopin + Barenboim

Uma prenda da Deutsche Grammophon: a partir de 15 de Maio, quinzenalmente, a etiqueta alemã oferece um 'Momento Musical' com um dos artistas do seu vasto e fascinante catálogo. Primeira proposta: Daniel Barenboim interpreta o Estudo Op. 25, No.1, de Chopin — filmado na Pierre Boulez Saal, Berlim.

sexta-feira, maio 15, 2020

Alison Mosshart, "It Ain't Water"

Um novo álbum de The Kills está em laboração... Entretanto, em confinamento, Alison Mosshart tem andado, como ela diz [NME], a recuperar material arquivado, não editado. Daí as novidades: depois de Rise, It Ain't Water é o lado B do mesmo single, servido por um belo e austero teledisco a preto e branco.

quinta-feira, maio 14, 2020

Spike Lee, "New York, New York"

É uma carta de amor ao povo de Nova Iorque: Spike Lee dá-nos a ver a grande metrópole sob o efeito do COVID-19, convocando a canção-tema de New York, New York (1977), de Martin Scorsese, e utilizando a maravilhosa película Super 8 da Kodak. I wanna wake up in a city / that doesn't sleep...