Margaret Qualley sujeitando-se aos efeitos (pouco) especiais |
As fábulas sobre os corpos humanos que adquirem formas monstruosas definem uma tradição que o filme A Substância tenta relançar. Infelizmente, o seu simplismo narrativo não ajuda… mas ganhou o prémio de argumento em Cannes — este texto foi publicado no Diário de Notícias (31 outubro).
Recentemente chegado aos ecrãs portugueses, o filme A Substância, coprodução França/Reino Unido/EUA com argumento e realização da francesa Coralie Fargeat, foi um dos chamados “acontecimentos mediáticos” do último Festival de Cannes. Isto porque há sempre sectores da imprensa internacional, com inevitável destaque para algumas vozes em língua inglesa, disponíveis para encontrar e celebrar o “filme-choque” de cada festival.
A saga de Elisabeth Sparkle, aos 50 anos despedida do seu programa de televisão, começa por ser uma história que avança com a elegância de um elefante numa loja de porcelanas… A sua transformação numa personagem “alternativa”, mais nova e atraente, graças a uma droga do mercado negro (a “substância” que o título refere), está quase por inteiro condensada nos dois minutos do trailer. Seja como for, isso não impediu o júri oficial, presidido pela realizadora de Barbie, Greta Gerwig, de lhe entregar o prémio de melhor argumento — registe-se, a propósito, que os filmes escritos e dirigidos por Francis Ford Coppola (Megalopolis), Paul Schrader (Oh Canada) e David Cronenberg (The Shrouds) saíram da Côte d’Azur sem qualquer distinção…
Acontece que A Substância se vai esgotando em variações banais sobre uma questão temática e figurativa — a decomposição do corpo humano em formas monstruosas — cujo assombramento se renovou, evoluindo tecnicamente, com dois filmes admiráveis do começo da década de 80: Um Lobisomem Americano em Londres (1981), de John Landis, e The Thing/Veio do Outro Mundo (1982), de John Carpenter.
Escusado será dizer que a passagem de Sparkle a uma nova encarnação, de nome Sue, não corre nada bem: os erros na aplicação da droga vão gerando uma parada de transfigurações monstruosas… Aquilo que alimentava fábulas tocadas pela irrisão da comédia (Landis) ou pela inquietação da tragédia (Carpenter) fica reduzido, no tratamento de Fargeat, a uma histeria visual próxima do sistema de redundâncias de muitas formas publicitárias.
A ânsia de Sparkle “renascer” através de um novo corpo, dando origem a Sue, surge tratada como uma performance, no sentido mais esquemático que a palavra pode envolver. É esse, aliás, um vício generalizado de muitos filmes contemporâneos que usam e abusam do cinema como um banal instrumento de “criação” de imagens susceptíveis de integrar o fluxo de “efeitos-choque” que passou a contaminar muitas formas mediáticas (incluindo, infelizmente, o jornalismo que vive da fabricação de simulacros de “polémica” e “escândalo”). Que podem as actrizes face a tudo isto? Muito pouco. Demi Moore e Margaret Qualley, respectivamente como Sparkle e Sue, bem se esforçam, mas este tipo de cinema nasce de um pecado sem remissão. A saber: encarar os intérpretes como meros suportes de alguma agitação visual.