"O tempo passou, como passam as nuvens..." (Morangos Silvestres, 1957, de Ingmar Bergman) |
Vencedor do Prémio Leya de 2015, António Tavares publica agora Mesmo Não Indo, o Tempo Vai, uma antologia de narrativas breves: são histórias apostadas em percorrer e questionar, ora com gravidade, ora com humor, os “enredos” do nosso quotidiano — este texto foi publicado no Diário de Notícias (7 agosto).
Eis uma expressão que tem tanto de retrato intuitivo como de hipótese filosófica: Mesmo Não Indo, o Tempo Vai. É esse o título da nova antologia de contos de António Tavares (ed. Dom Quixote, julho 2024). São 19 histórias que, em qualquer caso, se apresentam, não como “contos”, antes com a designação de “ficções” — um pormenor que não será uma mera questão de nomenclatura.
Na verdade, a agressividade da mais medíocre cultura televisiva tende a associar a noção de “conto” ao estilo e à mensagem de alguns exercícios (ditos) documentais cujo único objectivo é a redução de qualquer actividade humana a alguma forma de pitoresco. Que pitoresco é esse? Pois bem, a celebração das personagens e suas acções como sintomas mais ou menos anedóticos, por vezes grosseiramente caricaturais, da vida de todos os dias. Dos profissionais da política às vedetas do futebol, evita-se a complexidade dos factos, memórias e ideias, para que todos sejam tratados como agentes de uma futilidade sem responsabilidade — é esse o modelo corrente de pitoresco, vendido como inquestionável realismo.
Ora, justamente, a escrita de António Tavares não é realista. Ou melhor, não o é nesse sentido vulgar e superficial. O que, entenda-se, não significa que estas prosas sejam estranhas aos contrastes de uma realidade carregada de índices realistas (passe a redundância). Porquê? Porque somos levados a compreender que a realidade é tanto aquilo que conhecemos em paralelo com as personagens, como tudo o que se lhes escapa através das suas acções.
“A rapariga disse que dependia do enredo” — assim começa a ficção que se intitula, justamente, “O enredo”. O que não quer dizer que se siga uma “explicação” daquilo que a “rapariga” disse. Logo a seguir, sem mudar de parágrafo, escreve o narrador: “Nesse momento, o motorista do autocarro fez uma travagem brusca e um sujeito idoso, agarrado a um varão, na zona do meio da viatura, voou até aos meus pés e caíu pesado sobre eles.” Pobre narrador, a realidade não o deixa descansar: “Era sempre este azar: se seguia na minha paz, algo haveria de cair-me em cima dos pés.”
Com metódica subtileza, as histórias vão adquirindo uma ambiguidade a que, à falta de melhor, poderemos chamar “cinematográfica”, de tal modo as evidências das imagens que nos são propostas atraem as mais inusitadas variações. Vale a pena citar o modo como o narrador, em pose cinéfila, faz o balanço dos seus fantasmas: “Todos os dias eu tinha estes sonhos ou visões como uma película de um filme a passar numa máquina de projecção, enquanto a fita ia mudando de uma bobine para outra. Às vezes, no sonho também havia plateia, como acontece nas execuções na América, gente enternecida por assistir à morte, à passagem de um ser vivo para outro que já está a deixar de ser.”
A nitidez da morte envolve a interrogação do tempo. Um pouco à maneira de alguns filmes clássicos, por exemplo da primeira fase existencial de Ingmar Bergman (fará sentido chamar-lhe existencialista?). Sentimos que o tempo baralha as evidências de quase tudo o que acontece. Na singularidade de uma nova imagem, na eclosão de uma frase imprevista, através de uma palavra por decifrar, o tempo parece decompor-se numa coleção de detritos que encerra o enigma do nosso ser. Enigma implacável. Assim se diz em “O velho que ouvia o neto ao piano”, um pouco antes de se esclarecer a motivação do título do livro: “O tempo passou, como passam as nuvens, os viajantes pelas estradas e lugares, a meninice e a juventude.”
O autor cultiva uma frondosa diversidade, cuja gravidade não exclui momentos contagiantes de humor. Logo a abrir, por exemplo, em “O homem que levava as chamas do inferno a arder dentro de si”, o título é para ser tomado à letra. Em “As asas das borboletas são de cores vivas”, o lirismo inaugural antecipa a reviravolta de um verdadeiro conto policial. Enfim, em “As botas”, o pitoresco, neste caso genuíno, do calçado do sargento em cenário de guerra irá desembocar na geometria de uma insólita parábola moral.
Dir-se-ia que, ao lidar com os sobressaltos do quotidiano, António Tavares quis experimentar todas as formas narrativas que as próprias palavras pudessem atrair ou sustentar — o estilo evoca, aliás, O Coro dos Defuntos, que lhe valeu o prémio Leya de 2015. Era um romance organizado em capítulos breves, outras tantas ficções sobre um universo também paradoxal: os dados realistas atraem sempre os deliciosos sobressaltos do absurdo.