quinta-feira, julho 04, 2024

David Mamet
— Aristóteles em Hollywood

David Mamet e Helen Mirren — rodagem de Phil Spector (2013)

David Mamet escreveu um livro de memórias: contra o “politicamente correcto”, sempre em nome do amor pelo cinema — este texto foi publicado no Diário de Notícias (9 junho).

David Mamet (76 anos) nunca irá parar de ajustar contas com Hollywood — a memória das suas aventuras e desventuras na “fábrica de sonhos” é mesmo um dos seus desportos preferidos. Vindo do teatro, estreou-se no cinema com o argumento de O Carteiro Toca Sempre Duas Vezes (1981), com Jack Nicholson e Jessica Lange dirigidos por Bob Rafelson. Logo a seguir, O Veredicto (1982), de Sidney Lumet, valeu-lhe uma primeira nomeação para o Oscar de melhor argumento adaptado, proeza que repetiria com Manobras na Casa Branca (1997), de Barry Levinson. Estreou-se na realização com o prodigioso Jogo Fatal (1987), iniciando uma filmografia pessoal em que podemos encontrar títulos tão admiráveis como As Coisas Mudam (1988) ou O Golpe (2001), desembocando no telefilme Phil Spector (2013), com Al Pacino e Helen Mirren.
Como ele reconhece, são momentos de um trabalho feliz e gratificante, ainda que pontuado por muitos conflitos (e despedimentos) resultantes de uma guerra interminável com alguns executivos, alheios a qualquer interesse pelo cinema, que lhe apareceram pelo caminho. O livro mais recente de Mamet — Everywhere an Oink Oink (Simon & Schuster, Nova Iorque, dez. 2023) — é uma antologia amarga e doce de tais conflitos, mas sobretudo uma celebração de um amor genuíno pelo cinema que passa pela exigência da escrita e pela cumplicidade com os actores.
O “oink oink” do título é para ser tomado à letra: um grunhido de porcos. Não os simpáticos animaizinhos gorduchos, mas os “suínos” que exploram a candura humana. Eis a metáfora: “Todos sabemos que os nossos verdadeiros adversários são os suínos que se aproveitam da nossa boa natureza feita estupidez. Defendemo-nos contra as ameaças óbvias, mas os agressores estudam-nos para atacarem os nossos pontos sem defesa. É lógico.”
Para ilustrar a sua revolta, tecida de ironia e sarcasmo, Mamet recheou o livro com “cartoons” de sua autoria e múltiplas anedotas dos bastidores de Hollywood. Através dos primeiros, ficamos a saber que a carreira de desenhador ou pintor não seria a sua vocação. De resto, podemos deliciar-nos com as peripécias mais ou menos insólitas, por vezes discretamente obscenas, de atribulações vividas por Frank Sinatra, Don Ameche, Marlene Dietrich, Henry Fonda ou Jessica Lange… Há momentos em que a crueldade tem o seu quê de masoquista. Leia-se a anedota que encima as informações da contracapa: “Uma visita importante chega a Hollywood e pede aos estúdios que lhe mandem uma prostituta de mil dólares — enviam-lhe um argumentista.”
Dito isto, não nos enganemos com as aparências. Tal como o teatro e o cinema de Mamet, Everywhere an Oink Oink envolve uma entrega total às artes narrativas, ou não fosse ele um profissional que se define como um “estudioso da linguagem”. Daí as múltiplas tomadas de posição contra a futilidade do “politicamente correcto” e, em particular, contra a cultura pueril da “diversidade”. Fiquemos por uma das mais contundentes (incluindo as respectivas maiúsculas): “Os dramas sobre ‘Doenças’ foram substituídos pela pornografia da ‘Diversidade’. Em ambos os casos, viola-se a máxima de Aristóteles segundo a qual a trajectória do Herói deve decorrer das suas escolhas, nunca da sua condição.”
Ficamos a saber, por exemplo, que Mamet guarda uma memória muito sentida da dedicação ao trabalho de Val Kilmer, numa altura em que o actor, em fase de decadência industrial, com ele rodou esse notável “thriller” político que é Spartan (2004). Porventura surpresos, compreendemos também que a precisão visual dos seu cinema o leve a considerar que “há poucos diálogos nos filmes que sejam significativos” (ele que escreveu alguns dos mais sofisticados diálogos do teatro e do cinema americano da segunda metade do século XX). Evocando, uma vez mais, as lições de Aristóteles, Mamet recorda que o final de uma narrativa deve ser ao mesmo tempo “surpreendente e inevitável”. Mais do que isso, para Mamet o mestre absoluto de tudo isso pertence aos tempos gloriosos do burlesco e do cinema mudo. A saber: Buster Keaton.
>>> Sherlock Jr. (1924), de Buster Keaton.


>>> Wikipedia: David Mamet.