Bella Baxter, aliás, Emma Stone: quais as fronteiras do ser humano? |
Em Pobres Criaturas, o filme de Yorgos Lanthimos que está na corrida dos Oscars, Emma Stone vive uma epopeia capaz de reinventar o clássico Frankenstein para o século XXI. Entre as exuberantes revelações do seu mundo fantástico, há mesmo um fado cantado por Carminho — este texto foi publicado no Diário de Notícias (25 janeiro).
Ao longo das últimas décadas, os filmes de super-heróis, com inevitável destaque para os que exibem a chancela da Marvel, foram perdendo a alegria criativa dos seus fundamentos, entregando a imaginação e o imaginário ao labor rotineiro dos departamentos de efeitos especiais. Ora, não se trata de negar o valor figurativo (ou sonoro) de tais efeitos na história dos filmes, em boa verdade desde os pioneiros do cinema mudo. Trata-se, isso sim, de recordar que o fantástico ou a fantasia são no essencial gerados pelo trabalho narrativo, não através da banal ostentação de técnicas mais ou menos sofisticadas. A partir de hoje nas salas, aí está um sugestivo exemplo desse trabalho: Pobres Criaturas, produção internacional (EUA / Reino Unido / Irlanda) realizada pelo grego Yorgos Lanthimos, Leão de Ouro em Veneza, com presença forte na actual temporada de prémios — nos Oscars obteve nada mais nada menos que 11 nomeações, incluindo a de melhor filme.
Convenhamos que Lanthimos não será um exemplo perfeito de um cineasta capaz de sustentar a coerência de uma narrativa sem ceder a formalismos superficiais que, por vezes, nos afastam da intensidade dramática das histórias que tem para nos contar. Os seus títulos anteriores — da tragédia familiar Canino (2009), ainda realizado na Grécia, ao drama histórico A Favorita (2018) — são sintomáticos disso mesmo.
Pobres Criaturas consegue, apesar de tudo, superar tais limitações, quanto mais não seja porque tem um magnífico argumento de Tony McNamara, baseado no romance Poor Things, de Alasdair Gray (está nomeado na categoria de melhor argumento adaptado). Dito de outro modo: esta é uma fábula sobre a criação científica de um novo ser, um Frankenstein para o século XXI.
A inspiração de Frankenstein (o romance de Mary Shelley publicado em 1818) evolui, aqui, através de uma derivação já experimentada pelo cinema. A saber: o Dr. Frankenstein cria uma mulher. Lembremos, por isso, que James Whale, autor do primeiro Frankenstein (1931) sonoro, dirigiu também A Noiva de Frankenstein (1935), sem esquecer que um dos clássicos da Hammer Film britânica se chama Frankenstein Criou uma Mulher (1967) e tem assinatura desse artesão genial que foi Terence Fisher.
Talvez que a maneira mais sugestiva de descrever a ambiência surreal de Pobres Criaturas seja através de um sublinhado da palavra “things” do título original. Estamos, de facto, perante a história cruel, mas visceralmente romântica, de uma “coisa” viva, afinal marcada por todas as emoções e comoções do factor humano: é ela Bella Baxter, a personagem interpretada pela prodigiosa Emma Stone, numa composição que já lhe valeu vários prémios — e também, claro, uma nomeação para o Oscar de melhor actriz.
Depois do suicídio de Bella, há um cientista dedicado às mais variadas “reconversões” dos corpos (humanos e não só…) que a vai devolver à vida. Mas este novo Frankenstein, ilusionista das formas vitais, de nome Godwin Baxter, não se limita a “ressuscitar” Bella, abençoando-a com o seu apelido: através de uma diferença radical na sua gestação cirúrgica (diferença que importa não revelar ao leitor), ela vai protagonizar um novo ciclo vital, não a partir da sua idade real, mas recomeçando na infância…
Tudo isto acontece em cenários de insólito barroquismo (melhor cenografia é outra das nomeações do filme), tratados em imagens de exuberante cromatismo, incluindo cenas reminiscentes do mais primitivo preto e branco (melhor fotografia, idem aspas). Há mesmo pormenores de saborosa ambivalência simbólica, como é o caso do fado interpretado por Carminho numa Lisboa que parece saída de uma banda desenhada futurista. Para Bella Baxter, esta é a odisseia da sua identidade, desafiando o espectador para uma aventura, tão romântica quanto sarcástica, através do labirinto do próprio conceito de personagem.
Nas nomeações para o Oscar de melhor actriz, Emma Stone surge na companhia de mais quatro admiráveis intérpretes, incluindo a favorita Lily Gladstone, em Assassinos da Lua das Flores, e a miraculosa Carey Mulligan, em Maestro. Seja como for, independentemente da escolha dos membros da Academia, o seu trabalho distingue-se por um jogo de contrastes cuja singularidade importa sublinhar.
Dir-se-ia que ela nos oferece uma antologia da evolução histórica da arte de representar perante uma câmara. Assim, no começo, descobrimo-la como uma variação dos corpos burlescos do tempo do mudo — não exactamente de Charlie Chaplin ou Buster Keaton, mas, antes disso, das atribulações dos filmes de Mack Sennett. A falta de coordenação dos seus movimentos vai a par de uma aprendizagem da própria linguagem: vemos, assim, a evolução dos gestos humanos como uma iniciação paralela à descoberta das primeiras palavras e, mais do que isso, à possibilidade de com elas construir frases.
A partir daí, as surpresas serão muitas e fascinantes, incluindo a revelação cândida (entenda-se: desprovida de medo ou culpa) da sexualidade — até porque Bella começará a compreender que, perante a experiência sexual, as palavras podem ser estranhamente insuficientes. Enfim, tudo isto acontecendo como uma épica conquista da consciência, perversamente nascida da mais poética inconsciência.