Viagem ao Sol — tempos de guerra, memórias portuguesas e austríacas |
Depois da Segunda Guerra Mundial, muitas crianças austríacas foram acolhidas por famílias portuguesas. Com assinatura de Ansgar Schaefer e Susana de Sousa Dias, Viagem ao Sol é uma belíssima revisitação das suas memórias — este texto foi publicado no Diário de Notícias (28 dezembro).
O menos que se pode dizer da filmografia de Susana de Sousa Dias é que nos propõe formas de ver e pensar que contêm uma crítica metódica dos modos de não ver e não pensar a que a “sociedade mediática” nos habituou (ou quer habituar). Lembro o exemplo modelar desse filme de 2010 que se intitula “apenas” 48, desenhando um mapa de imagens de prisioneiros da ditadura salazarista que resiste, ponto por ponto, às descrições militantes e apologéticas que acabam por nos afastar da complexidade da nossa história. O mesmo se dirá de Viagem ao Sol, co-realizado com Ansgar Schaefer (doutorado em História Contemporânea de Portugal, co-fundador e produtor da empresa Kintop) — datado de 2021, só agora chega às salas comerciais… mas valeu a pena esperar.
O pano de fundo é o Portugal da segunda metade da década de 1940, portanto depois do fim da Segunda Guerra Mundial, mas os protagonistas pertencem a um “lá fora” que tem tanto de trágico como de imaginário. Assim, a condição de país neutral durante o conflito conferiu a Portugal o estatuto de cenário adequado para acolher muitas crianças austríacas traumatizadas pela guerra e também, por vezes, por razões de saúde, necessitando de algum tipo de recuperação em clima de mais sol e calor.
Tal como no citado 48, o espectador é convocado para uma clara dissociação de imagens e sons. Não se trata de coleccionar imagens de arquivo para lhes “sobrepor” uma voz off que, por assim dizer, vem “explicar” tudo o que estamos a ver — não estamos, de facto, perante o modelo corrente de “notícias” que, em última instância, instrumentalizam as imagens como mera “justificação” do que está a ser dito.
Claro que, na história dos documentários, podemos citar muitos e brilhantes títulos em que uma determinada voz off conduz a narrativa, ajudando-nos a contextualizar as imagens. Seja como for, a singular energia de Viagem ao Sol, por vezes a sua descarnada comoção, enraiza-se num dispositivo de contrastes e complementaridades a que, porventura extrapolando em excesso, apetece chamar cubista.
Ouvimos vozes dos que viveram essa experiência de “migração”, mas o tempo de tais vozes — entenda-se: o tempo do seu registo — é, obviamente, o da própria produção do filme. Dito de outro modo: não se trata de usar palavras para “esgotar” o que estamos a ver, antes de gerar uma dialéctica que pode ter tanto de trágico como de sensual, levando-nos a pressentir (ver & ouvir) o turbilhão das histórias individuais e colectivas.
O minucioso trabalho de recolha, montagem e remontagem de materiais de arquivo (também uma revisitação de um Portugal que não pode ser reduzido ao pitoresco de algumas memórias televisivas) resulta tanto mais envolvente quanto as imagens não são “acumuladas”, mas olhadas com a precisão — e também o desejo — de um olhar genuinamente cinematográfico. Como? Por exemplo, através da amostragem obsessiva de certos fragmentos das fotografias. Ou ainda tratando os registos filmados com uma “câmara lenta” capaz de sugerir que a fugacidade de cada instante apela à eternidade das emoções.