De que falamos quando falamos do 25 de Abril? Ou ainda: que imagens mostramos para falarmos do 25 de Abril? E sobretudo: como mostramos essas imagens? – este texto foi publicado no Diário de Notícias (24 de Abril), com o título 'As fotografias e os seus corpos'.
Em vésperas de mais um 25 de Abril, não deixa de ser sintomático que tenha sido um objecto de cinema a lançar nos circuitos audiovisuais algumas imagens “diferentes” das memórias do Estado Novo. Falo de quê? Das fotografias dos prisioneiros da PIDE que constituem a matéria de base do filme 48, de Susana Sousa Dias, estreado nas salas escuras na passada quinta-feira. De facto, o imaginário televisivo que domina o nosso espaço social há muito gerou (e impôs) uma série de lugares-comuns que tende a representar a ditadura salazarista como uma colagem de símbolos maniqueístas onde só há “bons” e “maus” sem qualquer espessura carnal.
O tema nuclear de 48 é, justamente, essa carnalidade que, para além (ou aquém) das ideologias, permite perceber que a verdade de cada ser humano passa sempre pela singularidade do corpo. E não há nada de banal em tal opção, quanto mais não seja porque se trata de evocar, em particular, as torturas a que muitos dos protagonistas foram sujeitos. Em vez de cair na retórica televisiva (um microfone à frente de um entrevistado encarregado de “explicar” as imagens de arquivo), Susana Sousa Dias aposta numa tensão radical: de um lado, nas imagens, as fotografias do arquivo da PIDE, mostrando os rostos duros e sofridos dos prisioneiros; do outro, no som, as vozes daqueles que estão nas fotografias.
Tal opção envolve uma consciência das linguagens audiovisuais que, todos os dias, as televisões tentam minimizar. Assim, no espaço televisivo, a maior parte dos dispositivos favorece a ilusão de que combinar imagens “informativas” com sons “descritivos” é um acto espontâneo, espontaneamente vocacionado para uma verdade inquestionável. Para além da percepção determinista do mundo à nossa volta, semelhante atitude tenta retirar aos que produzem e montam as imagens qualquer dever de responsabilidade (em relação à complexidade do real).
Ora, justamente, 48 parte de uma questão visceralmente cinematográfica (e de que as televisões, por um qualquer decreto divino, quase sempre se julgam dispensadas). A saber: como enfrentar a densidade histórica de uma imagem? Mais do que isso: como lidar com o facto de qualquer imagem ser, não um objecto congelado na história, mas sim um elemento que renasce e, num certo sentido, se reinventa cada vez que sobre ela se deposita um novo olhar?
E há um espantoso efeito que nasce de tudo isto: subitamente, as imagens da PIDE deixam de existir como testemunhos frios, mais ou menos “esgotados” na sua condição de documentos históricos, para renascerem através da vida que as vozes do filme lhes devolvem. É essa, afinal, a genuína dimensão política deste filme invulgar: não a colagem a qualquer discurso normativo (televisivo ou partidário), mas sim a apropriação da herança (fotográfica) da PIDE para construir uma outra visão, tão política quanto cinematográfica.