terça-feira, dezembro 26, 2023

A cultura é uma guerra

Bradley Cooper em Maestro:
relançando a herança de Leonard Bernstein

A lição de Leonard Bernstein transcende a sua vida e o seu tempo: a arte de escutar a música envolve valores que continuam a marcar-nos — este texto foi publicado no Diário de Notícias (17 dezembro).

Uma das proezas equívocas da nossa cultura democrática nasce de um perverso recalcamento. A saber: deixámos que a noção de “entretenimento” fosse tomando o poder no nosso espaço cultural, a ponto de, por indiferença ou cinismo, aceitarmos que tudo aquilo que “entretém” está isento de qualquer necessidade de reflexão. Mais ainda: aos produtos que se reivindicam como bandeiras de algum “divertimento”, ou como tal são promovidos, supõe-se não ser legítimo pedir qualquer tipo de responsabilidade social.
A questão é suficientemente perversa, insisto, para que tomemos a devida atenção, de modo a não atrair mais uma gritaria de “opiniões” sobre o que é “bom” e o que é “mau”. “Eu acho que…” passou a ser a palavra-passe para que as possíveis trocas de ideias sejam reduzidas a paradas de narcisismo.
Trata-se apenas de dividir as águas, ou melhor, de reconhecer que as águas se dividem. Qualquer “produto cultural” (a expressão está viciada pela instrumentalização financeira do marketing mais demagógico) liga-se com valores de comunicação e narrativa que, com maior ou menor consciência, definem uma determinada visão do mundo — e não há nada de mais cultural do que a incompatibilidade desses valores gerada e, mais do que isso, expressa nas diferenças entre tais “produtos”.
Se quisermos resumir de forma esquemática, porventura sugestiva, o que está em jogo, talvez possamos dizer que aqueles que celebram os filmes de Jean-Claude Van Damme face aos que enaltecem a obra de Alfred Hitchcock poderão até partilhar algumas palavras (“divertimento”, “evasão”, “espectáculo”); o certo é que através de tal partilha não estão a dizer o mesmo, não se reconhecem nas mesmas ideias. Na verdade, estão em guerra — guerra cultural, entenda-se, sem vítimas humanas, mas enraizada numa brutal clivagem de valores.
Lembrei-me de tudo isto ao ver esse filme maravilhoso que é Maestro, de e com Bradley Cooper, evocando a vida e a obra de Leonard Bernstein (1918-1990). Não pude deixar de sentir que a figura de Bernstein vive em mim através de memórias calorosas, partilháveis, não tenho dúvidas, com muitas pessoas da minha geração: no começo da adolescência, tocado por um envolvente fascínio, pude descobrir Bernstein a apresentar alguns dos seus Concertos para Jovens (produzidos pela CBS, entre 1958 e 1972).
Escusado será esclarecer que não assisti a esses concertos com os mesmos propósitos ou ideias que, melhor ou pior, me levam a reavivar a respectiva memória. Nem saberei muito bem como descrever, apenas descrever, a minha postura face a tão peculiares acontecimentos audiovisuais. De uma coisa, agora, tenho a certeza: Bernstein falava para mim (cândida ilusão de espectador imberbe…) sem me impor qualquer valor único, muito menos compulsivo, em torno da música que tinha para apresentar. Na prática, a única solicitação que formulava às suas audiências podia (e pode) resumir-se num imperativo tão firme quanto delicado: escutem!
Como quem diz face a um filme: vejam! Sem esquecer que os filmes também se escutam… No caso de Bernstein, não se tratava de uma atitude de especialista “detentor” de um conhecimento para sempre cristalizado, mas sim do método de alguém capaz de reconhecer que qualquer passagem de saber — envolvendo curiosidade e prazer — começa na criação de dispositivos educacionais exigentes, sempre em aberto, alheios a visões paternalistas de crianças e adolescentes. Sobretudo sem receio de lhes fazer sentir que, face à desordem do mundo, há ou pode haver uma ordem do conhecimento que, longe de qualquer pedagogia banalmente “liberal”, saiba assumir, expor e problematizar os valores que a fundamentam.
Há outra maneira de dizer isto. Assim, no plano social ou, se quiserem, nos circuitos que nos ligam, aquele que enaltece Van Damme não é assim tão diferente do que prefere Hitchcock. Porquê? Porque ambos são responsáveis pela circulação de valores que, eles próprios, integram, protagonizam ou reforçam. Daí advém, aliás, um outro vício democrático que importa questionar: a responsabilidade da valorização dos “produtos culturais” não é descartável, existe sempre, sendo sempre geradora de diferenças impossíveis de anular em nome de um qualquer ecumenismo pueril. Escutar e ver, dar a ver e dar a escutar, exige muito trabalho.