Stallone: há mais vidas para lá de Rocky... |
Num documentário lançado pela Netflix, Sly, revisitamos a carreira de Sylvester Stallone, desde os tempos do anonimato até ao sucesso planetário de Rocky (1976): uma memória que tem a sedução e os limites de um discurso “terapêutico” — este texto foi publicaco no Diário de Notícias (9 de novembro).
O adjectivo inglês “sly” designa uma pessoa astuta, porventura maliciosa, mas também alguém que só o é através de um desafio aos seus próprios limites profissionais e emocionais. No cinema de Hollywood, Sly tornou-se o cognome de Sylvester Stallone e, agora, é o título de um documentário disponível na Netflix sobre as convulsões de uma carreira realmente alheia às regras tradicionais do “star system”.
Entre as entidades produtoras está a empresa que o próprio Stallone fundou em 2018, Balboa Productions, começando a sua actividade com Rambo - A Última Batalha (2019), de Adrian Grunberg; na sua carteira de títulos encontramos, por exemplo, Samaritan (2022), filme também por ele protagonizado, sob a direcção de Julius Avery, apostando na possibilidade de lançar um novo registo no território ficcional dos super-heróis. Não há nisso nada de invulgar, muito menos suspeito, mas ajudará a compreender um pouco melhor o facto de Sly ser, no essencial, um discurso na primeira pessoa, dir-se-ia “auto-terapêutico”: revisitamos as atribulações de alguém que, graças ao filme Rocky (1976), por ele escrito e interpretado, ascendeu da condição de actor à deriva, sempre com imensas dificuldades para encontrar trabalho, ao estatuto de estrela planetária.
Realizado por Thom Zimny, colaborador regular de Bruce Springsteen (foi ele que dirigiu Springsteen on Broadway, também disponível na Netflix), Sly cedo define o seu programa narrativo e, nessa medida, os limites da sua “introspecção” algo repetitiva. Tudo acontece a partir de duas premissas explicitadas logo nas primeiras cenas: primeiro, uma juventude vivida no interior de uma família desconjuntada e, em particular, marcada pela violência repressiva do pai; depois, o inesperado impacto de Rocky (três Oscars, incluindo o de melhor filme de 1976) e os prós e contras de uma carreira marcada pelo dilema de renovar a imagem desse filme ou arriscar em projectos claramente diferentes.
Dir-se-ia que estamos perante um processo de resgate da personagem do pugilista Rocky Balboa, devolvendo-o a um contexto em que podemos perceber melhor o efeito singular (simbólico & comercial) da sua condição de herói solitário marcado por feridas emocionais em tudo e por tudo idênticas à do seu criador. O filme de 1976 é tratado com a merecida atenção que não é dada às suas sequelas (francamente menores), o mesmo acontecendo, aliás, com a série de aventuras de Rambo, em que todo o destaque vai para o primeiro título, First Blood/A Fúria do Herói (1982), de Ted Kotcheff (muito mais interessante do que tudo o que se seguiu).
A outra “franchise” a que está ligado o nome de Stallone, The Expendables/Os Mercenários, surge prudentemente (e justificadamente) reduzida a uma nota de rodapé. No sector dos depoimentos encontramos, entre outros, o irmão Frank Stallone, Talia Shire (intérprete da mulher de Rocky) e Quentin Tarantino. Graças a Tarantino, é também evocado aquele que é, por certo, o melhor filme em que Stallone já participou apenas como actor: Cop Land-Zona Exclusiva (1997), de James Mangold.