Mishima (1985): o universo de Yukio Mishima revisitado por Paul Schrader. |
Para lá das secções competitivas, o Porto/Post/Doc é um festival que propõe interessantes ziguezagues entre passado e presente, de algum modo questionando hipóteses de futuro: destaque para “Onde Andam os Nossos Contadores de Histórias?” — este texto foi publicado no Diário de Notícias (14 novembro).
Na vasta oferta da 10ª edição do Porto/Post/Doc (17-25 nov.), vale a pena fazer um destaque para a secção “Onde Andam os Nossos Contadores de Histórias?”. Desde logo pela inclusão de alguns títulos cuja actualidade, temática e simbólica, não será preciso sublinhar — penso, por exemplo, em Werner Herzog – Radical Dreamer (2022), de Thomas Von Steinaecker, dedicado a um cineasta cujos delírios ficcionais (será inevitável recordar a referência de Fitzcarraldo, datado de 1982) nunca foram estranhos a uma singular pulsão documental.
Em qualquer caso, o destaque inclui um sublinhado para o próprio título da secção. Na verdade, hoje em dia observamos muitas formas de jornalismo, directa ou indirectamente ligadas a normas de raiz televisiva, que se definem apenas por esse programa de... “contar histórias”. Na prática, isso tende a favorecer a definição do próprio jornalista, não como um apaixonado pela austeridade dos factos, antes uma espécie de “trovador do real” que se satisfaz com a redução dos seres e dos eventos a componentes mais ou menos pitorescas.
Ora, aquilo que o Porto/Post/Doc sugere são oito filmes (um por dia, como se refere no programa) que, recuando a passados mais ou menos próximos, nos ajudam a (re)descobrir a pluralidade e o desejo visceral de “contar histórias”, não para satisfazer qualquer nostalgia decorativa, antes para nos (re)colocar perante a complexidade do real — enfim, daquilo a que, num determinado contexto, chamamos real.
Lembremos o notável Mishima (1985), de Paul Schrader, retrato do escritor japonês Yukio Mishima (1925-1970) que, se dúvidas houvesse, nos garante que não há forma de contar histórias que possa ser alheia às convulsões da política — entendendo-se a política no seu sentido primordial de habitação e relação com os outros no interior de um território social a que queremos chamar colectivo.
Lembremos também uma preciosidade como Candy Mountain (1987), de Rudy Wurlitzer e Robert Frank, que talvez se possa descrever como uma extensão cinematográfica das fotografias de Frank (1924-2019) e, em particular, da ilustração/decomposição de um imaginário americano iniciada com esse livro emblemático que é Os Americanos (cuja primeira, datada de 1958, surgiu em França).
O ciclo arranca com um filme (Batalha Centro de Cinema, dia 19, 16h30) que talvez se possa classificar como um guia exemplar para os temas, contrastes e contradições que podem envolver os nossos “contadores de histórias”. Chama-se Nam June Paik: Moon Is the Oldest TV [trailer aqui em baixo] e foi revelado no passado mês de janeiro no Festival de Sundance. Realizado por Amanda Kim, nele se propõe um retrato do universo de Nam June Paik (1932-2006), tradicionalmente, e justificamente, chamado o “pai da videoart” — para vermos como, para o melhor e, não poucas vezes, para o pior, passámos a viver a nossa história rodeados de ecrãs... e apenas através de ecrãs.