A Tragédia do Bushidô: maravilhas do ecrã largo |
Mais um filme integrado na terceira fase da série "Mestres Japoneses Desconhecidos", apresentada por The Stone and the Plot: a descoberta de A Tragédia do Bushidô, produção japonesa de 1960, baralha e enriquece a nossa percepção actual do cinema — este texto foi publicado no Diário de Notícias — 5 de novembro.
Não há muitos anos, o imaginário dos super-heróis — entenda-se: o seu marketing — conseguiu criar um público que parecia viver apenas da expectativa de uma nova estreia que, em forma de sequela, repetisse a experiência do filme anterior. Foi um tempo esclarecedor sobre as formas que pode assumir o ódio à crítica de cinema. Aliás, ódio a qualquer possibilidade de pensar os filmes e, sobretudo, com os filmes, já que a relação com o cinema pode envolver o prazer de muitas ideias e não nasce da corrida aos bilhetes para as ante-estreias do próximo “blockbuster” (alguns magníficos, é verdade, não é isso que está em causa).
Lembrei-me dos desmandos dessa conjuntura ao ver o belíssimo A Tragédia do Bushidô, produção japonesa de 1960 realizada por Eitarô Morikawa — é um dos títulos incluídos na terceira fase da série “Mestres Japoneses Desconhecidos”, da responsabilidade da distribuidora e editora The Stone and the Plot, a quem se deve, por exemplo, a edição portuguesa do clássico estudo de Donald Richie sobre o mestre japonês Yasujiro Ozu (Ozu, 2020).
Na verdade, algo mudou. Digamo-lo da forma mais simples: mesmo sabendo que continuam a existir muitos desequilíbrios no mercado cinematográfico português, algo mudou para melhor. A saber: empresas como The Stone and the Plot, a que associamos o epíteto de “independentes” no panorama da distribuição/exibição, têm sabido alargar e diversificar a oferta cinematográfica, permitindo descobrir ou reencontrar filmes importantes, das mais diversas origens — da Ásia, por exemplo.
É simples, mas não simplifiquemos. Importa não ceder às muitas formas de estupidez alimentadas pela ideologia do politicamente (ou moralmente, ou sexualmente) correcto e evitar confundir o espaço dos “independentes” com o paraíso cinéfilo — desde os tempos heróicos das salas de “arte e ensaio” que o rótulo tem servido também para consagrar gloriosas mediocridades. Além de que, observando uma zona diferente do mercado, a meu ver complementar, não será o negativismo “chique” em relação à lógica de produção da Netflix que me levará a hesitar dizer que o novo filme de David Fincher, O Assassino, é uma sublime obra-prima.
A Tragédia do Bushidô permite perceber que a relação com o passado do cinema se refaz sempre como presente — esse tempo (presente, justamente) em que acedemos a um determinado filme com uma data mais ou menos remota. Ver A Tragédia do Bushidô, feito há mais de 60 anos, nada tem que ver com a noção (falsamente) jornalística que tenta convencer-nos que de um filme “antigo” nada mais ficou a não ser o “pitoresco” dos sinais da época em que foi feito. O seu poder emocional é tanto maior quanto a encenação de uma tragédia no mundo dos samurais ecoa através de uma interrogação intemporal: como é que o primado da lei passa (ou não passa) de uma geração para outra?
Esta é a história de um jovem que, de modo a preservar a honra do seu clã de samurais, é compelido a suicidar-se num ritual (“seppuku”) imposto pela morte do seu soberano — recorde-se que “Bushidô” é o código moral dos samurais. Ao tentar salvá-lo pela entrega sexual, a sua cunhada, que é também a mulher que o criou, projecta essa história num terreno em que a ordem conjugal e a lógica militarista se cruzam numa avalanche de ambiguidades que convive com o tabu primordial: a hipótese do incesto.
Estamos perante um filme da “nova vaga” japonesa, paralela ao que estava a acontecer em muitos outros países (França, Brasil, Portugal…), potenciando uma temática que, ao longo da década anterior, pontuara, precisamente, o trabalho de Ozu: a decomposição, no Japão do pós-guerra, das tradicionais relações familiares — os dramas suspensos, infinitamente pudicos, de Ozu vão-se transfigurando em tragédias carnais, por vezes marcadas por formas viscerais de violência. Aliás, é também em 1960 que Nagisa Oshima realiza esse título emblemático que é Contos Cruéis da Juventude. Claro que há três séculos a separar o mundo feudal de A Tragédia do Bushidô da época em que o filme foi realizado. Acontece que a contaminação dos tempos — ou das medidas do tempo — é inerente à vida dos filmes, ao modo como essa vida se refaz, igual e diferente, através dos olhares de novos espectadores. Enfim, se precisarmos de responder à pergunta pueril sobre a “utilidade” do filme, podemos, em última instância, apontar a sábia utilização do ecrã largo (herdeiro do CinemaScope, vulgarizado na década anterior): respeitar o sistema de composição de cada imagem, eis um valor que, neste século XXI, muitos filmes da Marvel têm tentado destruir.
Lembrei-me dos desmandos dessa conjuntura ao ver o belíssimo A Tragédia do Bushidô, produção japonesa de 1960 realizada por Eitarô Morikawa — é um dos títulos incluídos na terceira fase da série “Mestres Japoneses Desconhecidos”, da responsabilidade da distribuidora e editora The Stone and the Plot, a quem se deve, por exemplo, a edição portuguesa do clássico estudo de Donald Richie sobre o mestre japonês Yasujiro Ozu (Ozu, 2020).
Na verdade, algo mudou. Digamo-lo da forma mais simples: mesmo sabendo que continuam a existir muitos desequilíbrios no mercado cinematográfico português, algo mudou para melhor. A saber: empresas como The Stone and the Plot, a que associamos o epíteto de “independentes” no panorama da distribuição/exibição, têm sabido alargar e diversificar a oferta cinematográfica, permitindo descobrir ou reencontrar filmes importantes, das mais diversas origens — da Ásia, por exemplo.
É simples, mas não simplifiquemos. Importa não ceder às muitas formas de estupidez alimentadas pela ideologia do politicamente (ou moralmente, ou sexualmente) correcto e evitar confundir o espaço dos “independentes” com o paraíso cinéfilo — desde os tempos heróicos das salas de “arte e ensaio” que o rótulo tem servido também para consagrar gloriosas mediocridades. Além de que, observando uma zona diferente do mercado, a meu ver complementar, não será o negativismo “chique” em relação à lógica de produção da Netflix que me levará a hesitar dizer que o novo filme de David Fincher, O Assassino, é uma sublime obra-prima.
A Tragédia do Bushidô permite perceber que a relação com o passado do cinema se refaz sempre como presente — esse tempo (presente, justamente) em que acedemos a um determinado filme com uma data mais ou menos remota. Ver A Tragédia do Bushidô, feito há mais de 60 anos, nada tem que ver com a noção (falsamente) jornalística que tenta convencer-nos que de um filme “antigo” nada mais ficou a não ser o “pitoresco” dos sinais da época em que foi feito. O seu poder emocional é tanto maior quanto a encenação de uma tragédia no mundo dos samurais ecoa através de uma interrogação intemporal: como é que o primado da lei passa (ou não passa) de uma geração para outra?
Esta é a história de um jovem que, de modo a preservar a honra do seu clã de samurais, é compelido a suicidar-se num ritual (“seppuku”) imposto pela morte do seu soberano — recorde-se que “Bushidô” é o código moral dos samurais. Ao tentar salvá-lo pela entrega sexual, a sua cunhada, que é também a mulher que o criou, projecta essa história num terreno em que a ordem conjugal e a lógica militarista se cruzam numa avalanche de ambiguidades que convive com o tabu primordial: a hipótese do incesto.
Estamos perante um filme da “nova vaga” japonesa, paralela ao que estava a acontecer em muitos outros países (França, Brasil, Portugal…), potenciando uma temática que, ao longo da década anterior, pontuara, precisamente, o trabalho de Ozu: a decomposição, no Japão do pós-guerra, das tradicionais relações familiares — os dramas suspensos, infinitamente pudicos, de Ozu vão-se transfigurando em tragédias carnais, por vezes marcadas por formas viscerais de violência. Aliás, é também em 1960 que Nagisa Oshima realiza esse título emblemático que é Contos Cruéis da Juventude. Claro que há três séculos a separar o mundo feudal de A Tragédia do Bushidô da época em que o filme foi realizado. Acontece que a contaminação dos tempos — ou das medidas do tempo — é inerente à vida dos filmes, ao modo como essa vida se refaz, igual e diferente, através dos olhares de novos espectadores. Enfim, se precisarmos de responder à pergunta pueril sobre a “utilidade” do filme, podemos, em última instância, apontar a sábia utilização do ecrã largo (herdeiro do CinemaScope, vulgarizado na década anterior): respeitar o sistema de composição de cada imagem, eis um valor que, neste século XXI, muitos filmes da Marvel têm tentado destruir.