O Som do Nevoeiro (1956) |
De que falamos quando falamos de cinema japonês? Digamos, para simplificar, que conhecemos as referências clássicas, incontornáveis, ao mesmo tempo que vamos podendo alargar as nossas perspectivas quando deparamos com filmes e autores que, valha a verdade, não apenas no mercado português, sempre tiveram escassa divulgação.
"Mestres japoneses desconhecidos III" é, como a designação indica, o resultado de um trabalho persistente e, à sua maneira, pedagógico de divulgação que tem vindo a ser desenvolvido pela distribuidora (também produtora e editora de livros) The Stone and the Plot. Agora, neste terceiro conjunto de títulos, surge, por exemplo, o belíssimo O Som do Nevoeiro (1956), de Hiroshi Shimizu (1903-1966).
Para lá de todas as possíveis e justificáveis aproximações de outros autores japoneses (além do mais, Kenji Mizoguchi era grande admirador de Shimizu), vale a pena destacar a precisão formal (não formalista, entenda-se) de O Som do Nevoeiro.
E não apenas através da sua metódica progressão dramática, com um jogo de flashbacks que, em boa verdade, geram um efeito poético de contemporaneidade de todas as emoções. Importa também acrescentar que essa precisão está em cada instante de cada cena: quase sempre começamos por observar a situação num plano fixo mais ou menos longo, de tal modo que quando a escala muda para um grande plano de um rosto, dir-se-ia que algo fica suspenso no tempo — como se uma determinada personagem (e também o espectador) descobrisse a estranha adequação do instante à eternidade.
Daí também a importância narrativa dos momentos em que a câmara percorre os cenários em movimentos laterais que, além do mais, tendem a sugerir aquilo que cada personagem (não) vê. Aliás, tudo se passa como se a câmara assumisse como uma das suas funções primordiais, não a amostragem dos espaços em que as personagens dialogam, mas o modo como esses espaços vão sendo contaminados por aquilo que essas mesmas personagens dizem ou calam.
A história do professor de botânica que, ao longo dos anos, em capítulos rigorosamente demarcados, vive nos Alpes japoneses uma odisseia de amor, desejo e infinito pudor vai-se arquitectando, assim, como um jogo com a irrisão do próprio tempo — como se não saíssemos do mesmo lugar (o que, afinal, é verdade) e tudo acontecesse numa dimensão cósmica.
Haverá maneira mais cristalina de dizer que a sabedoria de que se faz o cinema pode desafiar todas as medidas do tempo? Talvez que 1956 seja apenas outra maneira de dizer 2023.