terça-feira, outubro 03, 2023

CinemaScope: maior que a vida...
...ou, pelo menos, mais largo

A Túnica (1953), primeiro filme em CinemaScope

O CinemaScope surgiu há 70 anos, mas os nossos olhares contemporâneos desconhecem a sua herança — este texto foi publicado no Diário de Notícias (17 setembro).

O prazer da monumentalidade, um dos valores fulcrais das imagens do século XX, está a ser todos os dias decomposto, em particular nos nossos ecrãs televisivos. É um processo tanto mais triste quanto a maior parte dos seus protagonistas nem sequer tem consciência de que está a acontecer. Falo de quê? Do martírio a que é sujeita a noção, não teórica, mas instintiva — e, nessa medida, genuinamente sensual — de que há nas imagens a capacidade de serem “maiores que a vida” (bigger than life, ensina a mitologia americana, nesse aspecto muito mais visceral do que a europeia). E que, de todos os ecrãs, só o ecrã cinematográfico é capaz de garantir e celebrar tal grandeza. Sem esquecer, paradoxalmente, que a grandeza fútil de muitos super-heróis reforça aquele processo.
Tal decomposição não é estranha à promiscuidade visual instalada pelos novos recursos tecnológicos. Bastará ver alguns segundos de Lawrence da Arábia (1962) ou Apocalypse Now (1979) num ecrã de telemóvel para observarmos, ali mesmo, no aconchego das nossas mãos, o suicídio tecnológico das nossas utopias iconográficas: se tudo é literalmente manipulável, a própria noção de património não passa de um efeito virtual.
Sintoma quotidiano deste outro apocalipse é o facto de, em nome da informação jornalística, se ter normalizado a amostragem de imagens de telemóvel obtidas com o aparelho colocado em posição vertical (de tal modo que as partes laterais do ecrã televisivo são “enchidas” com a duplicação da imagem original, mas desfocada). Que acontece, então? Pois bem, a demonstração prática de que a maioria dos utilizadores e difusores dessas imagens de telemóvel passou a desconhecer a verdade espectacular e, sobretudo, as especificidades das imagens de ecrã largo.
Exemplos? Assim, alguém pode ter usado um iPhone 13, tendo à sua disposição um ecrã de 146,7 mm / 71,5 mm, em que a primeira medida é 2,05 vezes maior que a segunda; ou um Samsung Galaxy S20, em que essa proporção passa a ser 2,19 (151,7 mm / 69,1 mm). Dito de outro modo, os utilizadores têm à sua disposição uma imagem cujas proporções são muito próximas do formato de CinemaScope, na origem com uma largura 2,55 vezes maior que a altura… E, apesar disso, sem dúvida contra isso, colocam o telemóvel em posição vertical. Tudo isto com um suplemento absurdo: nas últimas décadas, os ecrãs caseiros ficaram cada vez mais próximos das proporções do CinemaScope.
Convém, por isso, não cedermos à aceleração noticiosa em que vivemos, acumulando números e estatísticas, repetições e mais repetições. Esta não é, de facto, uma curiosidade anedótica da semana que passou, mas uma história com muitas décadas: 70 anos se quisermos ser mais precisos, já que o primeiro filme em formato CinemaScope — The Robe (título português: A Túnica), um épico bíblico realizado por Henry Koster — se estreou em Nova Iorque no dia 17 de setembro de 1953.
A ironia, algo macabra, de tudo isto decorre do facto de a história nos ensinar que o lançamento comercial do CinemaScope — cujas raízes técnicas se podem encontrar em experiências iniciadas ainda no período mudo, em meados da década de 1920 — se ficou a dever, no essencial, à tentativa de combater a concorrência da… televisão. O cartaz original de The Robe referia-se mesmo a um “milagre moderno” que podia ser visto “sem óculos”! Que é como quem diz: evitando os “apêndices” obrigatórios para os filmes em 3D (que tinham começado a ser comercializados em 1952).
A conjuntura de 1953 pode ser resumida de modo simples: havia cada vez mais pessoas a ficar em casa a ver televisão e o cinema propunha-se oferecer uma grandiosidade física, também simbólica, inacessível aos pequenos ecrãs. A sua significação não se esgota nos sucessos e insucessos registados nesse período: em boa verdade, essa vocação “maior que a vida” pontua o cinema até aos nossos dias, desembocando nas salas IMAX. É certo que o IMAX tem servido, sobretudo, para aventuras de super-heróis cuja formatação deve mais ao marketing do que à cinefilia, mas um filme prodigioso como Oppenheimer, de Christopher Nolan, serve também de prova muito real de que é possível pensar o IMAX em função de outras ideias narrativas e diferentes valores de espectáculo.
Vivemos, assim, num universo em que a “ideologia” dos telemóveis tende a favorecer uma concepção ligeira e, por fim, descartável das imagens — de qualquer imagem. Cada vez que um cidadão se “esquece” que o ecrã do seu telemóvel pode ser usado em posição horizontal morre um pouco mais dos valores cinéfilos que pontuaram o século XX, não por acaso apelidado o “século do cinema”. O vazio dos olhares que agora se propaga não é uma peripécia pitoresca, mas o triunfo de uma cultura que concebe, multiplica e reproduz as imagens como resíduos descartáveis. Acontece milhões de vezes por segundo.