quinta-feira, setembro 14, 2023

Woody Allen
— um americano apaixonado pela Europa

Vittorio Storaro e Woody Allen
durante a rodagem do novíssimo Golpe de Sorte

À beira de celebrar 88 anos de idade, Woody Allen regressa a Portugal como músico de jazz, poucos dias depois da revelação, em Veneza, do seu 50º filme como realizador. A sua filmografia revela-nos um criador sempre ligado ao imaginário americano e, ao mesmo tempo, fortemente marcado pelo cinema europeu — este texto foi publicado no Diário de Notícias (13 setembro).

Nasceu a 30 de novembro de 1935, em Nova Iorque. A poucas semanas de celebrar o seu 88º aniversário, Woody Allen está de volta a Portugal, não exactamente como cineasta, mas músico: com dois concertos na agenda, ele vem celebrar o jazz e, em particular, os sons da tradição de Nova Orleães tão frequentemente ouvidos nas bandas sonoras do seus filmes.
Ligado a um imaginário americano em que a iconografia de Nova Iorque ocupa um lugar central, ele é também um autor cuja cinefilia mantém laços fortes com a Europa, com o cinema europeu e alguns dos seus autores mais emblemáticos. Ironicamente, nos últimos tempos, pode dizer-se que Woody Allen tem trabalhado quase como um realizador “europeu”; aliás, a par da sua actual digressão, esteve há poucos dias no Festival de Veneza para apresentar, extra-concurso, a sua 50ª longa-metragem, Coup de Chance, o seu primeiro filme falado em francês.
No plano profissional, o seu trabalho há muito deixou de ser uma prioridade dos grandes estúdios de Hollywood: títulos como Annie Hall, Intimidade, Manhattan e Stardust Memories/Recordações, todos feitos na segunda metade da década de 1970 com chancela da United Artists, correspondem a uma “idade de ouro” de produção que os tempos decompuseram — em boa verdade, a United Artists já nem sequer existe. Agora, Coup de Chance, porventura o ponto final da sua filmografia, além de falado em francês, é também o seu primeiro título com produção cem por cento europeia. Entretanto, os conflitos familiares com Mia Farrow deixaram marcas na percepção de Woody Allen por muitas pessoas, quer nos EUA, quer na Europa: foi acusado de abuso de uma das filhas do casal, depois ilibado pelos tribunais e condenado por algumas investigações jornalísticas (incluindo a mini-série Allen v. Farrow, disponível na HBO Max).

Comédia & drama

A imagem de cómico foi aquela que começou por definir a identidade de Woody Allen, o seu prestígio e a sua popularidade — com o cinema sempre enredado com o teatro. Estreou-se no cinema como argumentista e intérprete de Que Há de Novo, Gatinha? (1965), comédia burlesca dirigida por Clive Donner, com um elenco que integrava Peter Sellers, Peter O’Toole, Romy Schneider e Ursula Andress. Nesse período inicial, obteve um grande sucesso na Broadway com a peça Don’t Drink the Water, uma sátira em ambiente de Guerra Fria, estreada em 1968. Um ano mais tarde, protagonizava e realizava Take the Money and Run (entre nós O Inimigo Público), retrato “documental” de um desastrado ladrão de bancos: o humor nascia de diálogos tão curtos quanto desconcertantes, a par de uma metódica criação de situações de glorioso absurdo.
Seguiram-se comédias como O ABC do Amor (1972), uma bizarra enciclopédia sobre os mistérios do sexo, inspirada num “best-seller” da época, ou Nem Guerra, Nem Paz (1975), variação sobre as guerras napoleónicas, parodiando a herança de Tolstoi. Na sua ambígua ligeireza e elegância narrativa, Annie Hall (1977) recuperava modelos da comédia dramática de Hollywood e ficou como uma espécie de primeiro inventário de alguns temas obsessivos de Woody Allen: as relações sempre equívocas entre homens e mulheres, a discussão da identidade judaica e a constante sedução do pensamento psicanalítico.
Ironicamente, todo estes modos de ser um autor e actor cómico terão contribuído para nem sempre se dar a devida atenção ao facto de, muito cedo, a obra de Woody Allen exibir algumas radicais componentes dramáticas. Assim, em 1978, apenas um ano após o impacto de Annie Hall, ele escrevia e dirigia o seu primeiro filme em que não participava como actor: Intimidade (título original: Interiors). A dissecação das contradições e fantasmas de uma família, além de sustentada por um elenco de luxo (Diane Keaton, Geraldine Page, Mary Beth Hurt, Maureen Stapleton, Sam Waterston, etc.), revelava um Woody Allen que se assumia como discípulo de um mestre europeu: Ingmar Bergman.
Isto sem esquecer que Intimidade é também um dos momentos fulcrais da relação criativa com um dos génios da fotografia no cinema americano: Gordon Willis, responsável pelas imagens dos dois primeiros capítulos de O Padrinho (1972 e 1974). Em 1979, de novo com Willis, Woody Allen realizava Manhattan, desta vez num prodigioso preto e branco (em formato largo, “scope”), com a inesquecível integração de uma obra clássica da música “made in USA”: Rhapsody in Blue, de George Gershwin, num registo da Filarmónica de Nova Iorque sob a direcção de Zubin Mehta.

A família como teatro

A relação com alguns notáveis directores de fotografia define mesmo vários “capítulos” criativos na história cinematográfica de Woody Allen. Assim, depois de Gordon Willis, começou um ciclo de colaborações com o italiano Carlo Di Palma, ligado, em particular, à evolução das imagens a cor no trabalho de Michelangelo Antonioni (a partir de 1964, com O Deserto Vermelho). Nesta perspectiva, Ana e as suas Irmãs (1986), primeiro de doze títulos de Woody Allen fotografado por Di Palma — incluindo também uma experiência a preto e branco, Sombras e Nevoeiro (1991), citando a herança visual e temática do expressionismo alemão —, ocupa um lugar charneira na obra do actor/argumentista/cineasta. Muitas vezes citado como um fresco familiar marcado pela herança de Fanny e Alexandre (1982), de Ingmar Bergman, Ana e as suas Irmãs revisita as teias da paixão e da traição, da inocência e da culpa, reafirmando o universo de Woody Allen como um fascinante “teatro” de transfiguração dos actores. No papel das três irmãs, Mia Farrow, Barbara Hershey e Dianne Wiest são figuras de incríveis nuances emocionais, num elenco em que também encontramos, por exemplo, Michael Caine, Maureen O’Sullivan (mãe de Mia Farrow) e o “bergmaniano” Max Von Sydow.
Mais recentemente, a fotografia dos filmes de Woody Allen passou a ser assinada por outro italiano, Vittorio Storaro, mestre da luz e da cor que, para lá da sua múltipla relação com a obra de Bernardo Bertolucci — incluindo O Conformista (1970), O Último Tango em Paris (1972) e O Último Imperador (1987) —, assinou as imagens de Apocalypse Now (1979), de Francis Ford Coppola, e Reds (1981), de Warren Beatty. A sua relação iniciou-se com Café Society (2016), visão amarga e doce da década de 1930 em Hollywood, prolongando-se até ao novíssimo Coup de Chance — com o título Golpe de Sorte [trailer], a sua estreia portuguesa está agendada para 5 de outubro.