quarta-feira, setembro 27, 2023

Ted K - O Unabomber
ou o pesadelo do bom selvagem

Sharlto Copley no papel de Ted Kaczynski:
entre a utopia e o crime

O filme Ted K - O Unabomber, de Tony Stone, retrata a saga de Ted Kaczynski, um eremita que combateu os avanços da tecnologia através de vários actos terroristas perpetrados entre 1978 e 1995: é um exemplo invulgar do melhor cinema independente dos EUA — este texto foi publicado no Diário de Notícias (21 setembro).

Tony Stone
Num contexto mediático em que proliferam os filmes “baseados em factos verídicos”, qualquer aproximação de um desses filmes corre o risco de ficar bloqueada no realismo pueril do jornalismo mais sensacionalista: “sim, foi exactamente assim que aconteceu” ou “não, os factos foram abusivamente dramatizados”… Ted K - O Unabomber, de Tony Stone, é um desses filmes, por certo dos mais perturbantes, quanto mais não seja pela identidade da sua personagem central: Ted Kaczynski (1942-2023), terrorista doméstico rotulado de “Unabomber” que, entre 1978 e 1995, assombrou os EUA com uma série de atentados, quase sempre perpetrados através de bombas enviadas pelo correio, de que resultaram três mortos e mais de duas dezenas de feridos.
Lembremos, por isso, uma verdade rudimentar da história do cinema, hoje em dia minimizada pela selvajaria cognitiva que o Big Brother e, de um modo geral, a Reality TV impôs no nosso quotidiano: nenhum filme (como nenhum “conteúdo” televisivo) existe como mera “transcrição” de algo que aconteceu. Dito de outro modo: mesmo no interior das mais didácticas formas de realismo — lembremos a herança modelar do mestre italiano Roberto Rossellini (1906-1977) —, filmar é escolher matérias, organizar narrativas, construir pontos de vista, numa palavra, dramatizar.
O caso de Kaczynski afigurava-se tanto mais complexo e intrigante quanto a sua identidade, sobretudo a sua história antes dos atentados, estava longe de ser uma matéria muito documentada. Com uma excepção: o seu manifesto Industrial Society and its Future, escrito em 1995, que Kaczynski “ofereceu” ao jornal The Washington Post, garantindo que, depois da sua publicação, abandonaria a actividade terrorista.

Que utopia?

A publicação do manifesto aconteceu, de facto, e seria a “chave” para a sua prisão. Kaczynski vivia, desde 1971, como um eremita, numa zona florestal de Lincoln, no estado de Montana, falando esporadicamente, via telefone, com o irmão David Kaczynski (n. 1949); ao tomar conhecimento do texto, David reconheceu a escrita e as ideias de Ted, acabando por fornecer ao FBI as pistas que permitiram a sua captura a 3 de abril de 1996. Condenado a prisão perpétua, foi encontrado morto na sua cela há pouco mais de três meses, a 10 de junho, tendo os serviços prisionais considerado a sua morte um acto suicida — sofria de cancro terminal e contava 81 anos.
Como transformar “isto” num filme? Tony Stone, realizador da área independente norte-americana, terá pressentido na tragédia de Ted Kaczynski as marcas de uma nostalgia da natureza como elemento primordial de uma utopia que resiste aos avanços da tecnologia. Aliás, o tema está também presente no documentário que Stone realizou em 2016, Peter and the Farm, sobre o proprietário de uma quinta, no estado de Vermont, que se define como uma espécie de derradeiro agricultor empenhado na gestão das suas ovelhas e vacas sem ferir o equilíbrio dos elementos naturais… Com uma diferença que, obviamente, está longe de ser banal: Kaczynski mata pessoas para proclamar os seus ideais.
Daí o bizarro visual de Kaczynsci, tal como filmado por Stone em Ted K - O Unabomber. Por um lado, há nele qualquer coisa que o aproxima das figuras erráticas que povoam o cinema de Hollywood depois do período clássico, enfrentando a “selva urbana” em filmes como O Cowboy da Meia-Noite (1969), de John Schlesinger; por outro lado, a sua solidão radical remete-nos para a memória dos pioneiros de alguns “westerns” modernos, incluindo a personagem de Jeremiah Johnson interpretada por Robert Redford em As Brancas Montanhas da Morte (1972), de Sydney Pollack. Dir-se-ia que o seu sonho se propaga enquanto pesadelo, reduzindo a zero as ilusões redentoras de um qualquer bom selvagem.

Tecnologia e liberdade

O manifesto de Ted Kaczynsci tinha tanto de esquemático como de inequívoco: “A tecnologia moderna é a pior coisa que aconteceu ao mundo. Promover o seu progresso é nada menos que criminoso.” Aliás, a lógica da sua saga “purificadora” está bem expressa na sequência em que descobre, com ambígua curiosidade, o “progresso” que lhe é oferecido pela novidade dos computadores. Ao mesmo tempo, ele é o primeiro a ter consciência do individualismo fechado do seu discurso, reconhecendo que muitos sentirão repulsa face aos seus crimes e à “liberdade” que, na sua perspectiva, tais crimes procuram defender. A ponto de considerar que os “inimigos da liberdade” poderão usar os seus actos terroristas como “argumento para justificar o seu controle do comportamento humano”.
Elemento fundamental para o invulgar poder dramático de Ted K - O Unabomber é a composição de Sharlto Copley, também um dos produtores do filme, na personagem de Kaczynski. Vêmo-lo como paciente artesão de uma vivência de sistemática exclusão de qualquer contacto humano, ao mesmo tempo reflectindo um mal-estar que, apesar do seu delírio vingativo, é transversal a toda a sociedade. Por tudo isso, este é um filme realmente invulgar (e realmente independente) no actual panorama da produção dos EUA — foi revelado há mais de dois anos, no Festival de Berlim de 2021, mas apesar de tudo chegou às salas portuguesas.