Sharlto Copley no papel de Ted Kaczynski: entre a utopia e o crime |
O filme Ted K - O Unabomber, de Tony Stone, retrata a saga de Ted Kaczynski, um eremita que combateu os avanços da tecnologia através de vários actos terroristas perpetrados entre 1978 e 1995: é um exemplo invulgar do melhor cinema independente dos EUA — este texto foi publicado no Diário de Notícias (21 setembro).
Tony Stone |
Lembremos, por isso, uma verdade rudimentar da história do cinema, hoje em dia minimizada pela selvajaria cognitiva que o Big Brother e, de um modo geral, a Reality TV impôs no nosso quotidiano: nenhum filme (como nenhum “conteúdo” televisivo) existe como mera “transcrição” de algo que aconteceu. Dito de outro modo: mesmo no interior das mais didácticas formas de realismo — lembremos a herança modelar do mestre italiano Roberto Rossellini (1906-1977) —, filmar é escolher matérias, organizar narrativas, construir pontos de vista, numa palavra, dramatizar.
O caso de Kaczynski afigurava-se tanto mais complexo e intrigante quanto a sua identidade, sobretudo a sua história antes dos atentados, estava longe de ser uma matéria muito documentada. Com uma excepção: o seu manifesto Industrial Society and its Future, escrito em 1995, que Kaczynski “ofereceu” ao jornal The Washington Post, garantindo que, depois da sua publicação, abandonaria a actividade terrorista.
A publicação do manifesto aconteceu, de facto, e seria a “chave” para a sua prisão. Kaczynski vivia, desde 1971, como um eremita, numa zona florestal de Lincoln, no estado de Montana, falando esporadicamente, via telefone, com o irmão David Kaczynski (n. 1949); ao tomar conhecimento do texto, David reconheceu a escrita e as ideias de Ted, acabando por fornecer ao FBI as pistas que permitiram a sua captura a 3 de abril de 1996. Condenado a prisão perpétua, foi encontrado morto na sua cela há pouco mais de três meses, a 10 de junho, tendo os serviços prisionais considerado a sua morte um acto suicida — sofria de cancro terminal e contava 81 anos.
Como transformar “isto” num filme? Tony Stone, realizador da área independente norte-americana, terá pressentido na tragédia de Ted Kaczynski as marcas de uma nostalgia da natureza como elemento primordial de uma utopia que resiste aos avanços da tecnologia. Aliás, o tema está também presente no documentário que Stone realizou em 2016, Peter and the Farm, sobre o proprietário de uma quinta, no estado de Vermont, que se define como uma espécie de derradeiro agricultor empenhado na gestão das suas ovelhas e vacas sem ferir o equilíbrio dos elementos naturais… Com uma diferença que, obviamente, está longe de ser banal: Kaczynski mata pessoas para proclamar os seus ideais.
Daí o bizarro visual de Kaczynsci, tal como filmado por Stone em Ted K - O Unabomber. Por um lado, há nele qualquer coisa que o aproxima das figuras erráticas que povoam o cinema de Hollywood depois do período clássico, enfrentando a “selva urbana” em filmes como O Cowboy da Meia-Noite (1969), de John Schlesinger; por outro lado, a sua solidão radical remete-nos para a memória dos pioneiros de alguns “westerns” modernos, incluindo a personagem de Jeremiah Johnson interpretada por Robert Redford em As Brancas Montanhas da Morte (1972), de Sydney Pollack. Dir-se-ia que o seu sonho se propaga enquanto pesadelo, reduzindo a zero as ilusões redentoras de um qualquer bom selvagem.
O manifesto de Ted Kaczynsci tinha tanto de esquemático como de inequívoco: “A tecnologia moderna é a pior coisa que aconteceu ao mundo. Promover o seu progresso é nada menos que criminoso.” Aliás, a lógica da sua saga “purificadora” está bem expressa na sequência em que descobre, com ambígua curiosidade, o “progresso” que lhe é oferecido pela novidade dos computadores. Ao mesmo tempo, ele é o primeiro a ter consciência do individualismo fechado do seu discurso, reconhecendo que muitos sentirão repulsa face aos seus crimes e à “liberdade” que, na sua perspectiva, tais crimes procuram defender. A ponto de considerar que os “inimigos da liberdade” poderão usar os seus actos terroristas como “argumento para justificar o seu controle do comportamento humano”.
Elemento fundamental para o invulgar poder dramático de Ted K - O Unabomber é a composição de Sharlto Copley, também um dos produtores do filme, na personagem de Kaczynski. Vêmo-lo como paciente artesão de uma vivência de sistemática exclusão de qualquer contacto humano, ao mesmo tempo reflectindo um mal-estar que, apesar do seu delírio vingativo, é transversal a toda a sociedade. Por tudo isso, este é um filme realmente invulgar (e realmente independente) no actual panorama da produção dos EUA — foi revelado há mais de dois anos, no Festival de Berlim de 2021, mas apesar de tudo chegou às salas portuguesas.