quinta-feira, novembro 10, 2022

De Fassbinder a Ozon [1/2]

Denis Ménochet e Isabelle Adjani filmados por François Ozon:
o cinema através do teatro

Através do magnífico Peter von Kant, o francês François Ozon reencontra a herança da obra do alemão Rainer Werner Fassbinder: este é um filme capaz de celebrar o artifício do cinema a partir de uma herança visceralmente teatral — este texto foi publicado no Diário de Notícias (27 outubro), com o título 'Recriando a herança das lágrimas amargas'.

Apesar do poder do marketing dos filmes de super-heróis e, em muitas salas, do afunilamento da oferta, não se pode dizer que o mercado português viva alheado do trabalho de alguns dos mais importantes cineastas contemporâneos, sobretudo europeus. É o caso do francês François Ozon (nascido em Paris, em 1967) que continua a ser uma presença regular no nosso circuito comercial — agora com o magnífico, insólito e sedutor Peter von Kant, filme que, em fevereiro, integrou a secção competitiva do Festival de Berlim.
O título remete para As Lágrimas Amargas de Petra von Kant (1972), realizado pelo alemão Rainer Werner Fassbinder (1945-1982) a partir da sua peça homónima. Aí encontrávamos como figura central, interpretada por Margit Carstensen, uma criadora de moda a viver as convulsões de uma teia de paixões desencontradas em que todas as personagens são mulheres.
Ozon “transforma” Petra em Peter, não exactamente para fazer a versão “masculina” do drama de Fassbinder, antes para propor um jogo de revisão e reinvenção em que, para todos os efeitos, persistem duas fundamentais linhas de força: Peter experimenta também os movimentos passionais como um jogo (teatral, sem dúvida) que implica, transporta e desafia a verdade do amor; mais do que isso, as peripécias das suas “lágrimas amargas” levam-no a avaliar até que ponto o amor é (ou talvez não seja…) uma forma de possuir o ser amado.
A acção tem lugar em Colónia, em 1972, portanto no ano do filme de Fassbinder. Peter é também um artista, mas do mundo do cinema. Realizador de sucesso, vive no seu apartamento entre angústias existenciais e delírios de grandeza. Duas figuras paradoxais pontuam o seu quotidiano: o silencioso Karl, assistente que Peter trata de modo grosseiro e humilhante, mesmo se é ele que lhe escreve os argumentos dos filmes, e Sidonie, musa que protagonizou diversos momentos da sua obra e, agora, o visita regularmente. Numa dessas visitas, Sidonie apresenta-lhe o jovem Amir — Peter apaixona-se loucamente por Amir, com ele começando a viver uma relação que parece ser a realização de uma utopia tão carnal como romântica…
Se é possível superar o esquematismo da sinopse, talvez seja importante chamar a atenção do leitor para a ambivalência em que tudo isto acontece. Por um lado, Peter von Kant está longe de ser uma homenagem “copista” do filme de 1972; por outro lado, aquilo que em Fassbinder nos surgia como drama enredado em desejos enigmáticos e êxtases suspensos “renasce”, com Ozon, num registo de metódico distanciamento, dir-se-ia uma tragédia sempre evitada pelos sobressaltos de uma sofisticada comédia.