quinta-feira, outubro 06, 2022

Restos do Vento, o ecrã e os sons

Albano Jerónimo em Restos do Vento:
do sofrimento individual à tragédia colectiva

Restos do Vento prolonga um trabalho em que a complexidade das personagens nunca é estranha a uma magnífica direcção de actores: Tiago Guedes continua a filmar os caminhos labirínticos da inocência e da culpa — este texto foi publicado no Diário de Notícias (19 setembro), com o título 'A verdade do vento'.

Objecto de singular, sedutor e de perturbante envolvimento dramático, Restos do Vento não é, obviamente alheio à evolução de uma filmografia que inclui títulos tão marcantes como Entre os Dedos (2008) e A Herdade (2019). Ou ainda a curta-metragem Coro dos Amantes, a meu ver um dos títulos mais perfeitos assinados por Tiago Guedes.
Aí podemos encontrar, ao longo de pouco mais de 20 minutos, Isabel Abreu e Gonçalo Waddington (também intérpretes de Restos do Vento) vivendo um drama íntimo, pontuado por uma claustrofobia que, sendo física, é também visceralmente emocional. Tendo em conta o empenho e, mais do que isso, o didactismo com que Tiago Guedes fala da importância do tempo nas suas narrativas, creio que podemos dizer que Coro dos Amantes encena uma contradição tão cruel quanto poética, porventura sem solução. A saber: a diferença entre o desejo de controlar o presente por parte das personagens e o assombramento que provém de outro(s) tempo(s), ignorados, esquecidos ou enquistados nos seus fantasmas.
Não sendo estranho à vibração dramática de tal contradição, Restos do Vento é um filme que, de alguma maneira, intensifica essa lógica das vidas humanas — ou, se quisermos, a falta de lógica com que vivemos o que somos, o que julgamos ser e o que não sabemos que somos.
Há qualquer coisa de intriga policial na abordagem deste ritual pagão que vai marcar um grupo de jovens, quanto mais não seja porque a sua prática, ainda que “naturalizada” pelos costumes, faz vacilar todas as certezas sobre a distribuição social da inocência e da culpa. Até porque os efeitos perversos daquilo que aconteceu há 25 anos se vão multiplicando, enredados na mesma dor e nos mesmos silêncios... Tiago Guedes filma tudo isso com a “lentidão” (vertiginosa e perturbante, entenda-se) de quem contempla a complexidade de cada personagem. É também uma maneira de valorizar de forma invulgar, pelo menos no cinema que se faz em Portugal, a verdade que os actores podem transportar. Sem minimizar o brilhantismo global do elenco, será forçoso sublinhar essa pequena grande proeza que é a personagem de Laureano, em imaculada composição de Albano Jerónimo: afinal de contas, o cliché do “louco da aldeia” decompõe-se, para depararmos com um sofrimento trágico que, no limite, embora dilacerando aquele corpo e aquela alma, pertence a todos.
Restos do Vento chegou às salas cerca de quatro meses depois do seu impacto no Festival de Cannes, onde passou na secção de "Sessões Especiais”, fora de competição. Mesmo não menosprezando as alternativas caseiras que temos para ver filmes, creio que vale a pena sublinhar a singeleza do facto. Isto porque, no seu secretismo épico, indissociável da estranheza das casas e das paisagens, este é um filme que pede a verdade muito física do grande ecrã. Sem esquecer que o grande ecrã, sendo uma forma de ver, pertence também a um peculiar universo de escuta: com assinatura de Pierre Tucat (director de som) e Pedro Góis (montagem de som e mistura), Restos do Vento tem mesmo uma das mais requintadas ambiências sonoras da recente produção portuguesa — afinal de contas, o vento não se pode filmar, apenas ouvir.