terça-feira, outubro 04, 2022

O cinema, Godard,
a sua morte e a nossa vida

PABLO PICASSO
Les Demoiselles d'Avignon
1907

Eis uma pergunta que herdámos de Jean-Luc Godard: “Ainda te lembras como costumávamos treinar o nosso pensamento?” — este texto foi publicado no Diário de Notícias (18 setembro).

Há um curioso cliché defensivo nos debates televisivos com personalidades do mundo da política. Sempre (enfim, quase sempre) que uma dessas personalidades apresenta alguma argumentação sobre um determinado facto político, considerando que aquilo que aconteceu não pode ser separado da sua representação jornalística, há sempre (muitas vezes, enfim) um moderador que rapidamente bloqueia tal via de reflexão, lembrando que se está a falar de “política”, não de “comunicação social”.
Eis uma mitologia pueril: dir-se-ia que há quem acredite que a “comunicação” é algo de tão puro e, sobretudo, tão unívoco que a sua simples existência a dispensa de qualquer reflexão sobre as respectivas coordenadas e narrativas ou, no limite, a sua responsabilidade “social”.
A questão é tanto mais complexa — e, por isso, tanto mais fascinante — quanto até mesmo a noção primordial segundo a qual essa comunicação deve respeitar a verdade e demarcar-se da mentira não esgota a sua complexidade. Exemplo? É verdade que Cristiano Ronaldo andou a tentar mudar de clube, mas há uma diferença (social, justamente) entre essa notícia difundida uma vez, quando se soube do caso, ou a mesma notícia transformada em folhetim, repetida várias vezes por dia, sem qualquer complemento à informação inicial, ao longo de uma semana… Ou mais.
Outro exemplo: a morte do cineasta Jean-Luc Godard (no dia 13 de setembro, em Rolle, na Suíça, contava 91 anos). Escusado será dizer que, neste caso, como na possibilidade de uma reflexão mais abrangente como atrás referi, não me estou a colocar numa posição exterior ao problema — sou jornalista, sendo este texto, mal ou bem, também um sublinhado muito subjectivo dessa condição. Mais ainda: considero Godard um criador da dimensão de um Leonardo da Vinci ou um Mozart, sem o qual não é possível compreender o essencial das convulsões (técnicas, temáticas, estéticas) que marcam o cinema ao longo das últimas seis décadas.
Como uma espécie de virose sem origem nem pensamento, comecei a ler e a ouvir (e não me estou a referir apenas ao espaço português) que a pluralidade da filmografia de Godard, mesmo rejeitada por muitos espectadores, teria sido redimida por uma singular forma de consagração: ele foi, afinal, “aclamado pela crítica”.
Como? Importa-se de repetir? Aclamado? Pela crítica? Qual crítica?
O “fundamento” desta afirmação, mais do que paternalista, é insultuoso: o trabalho dos críticos de cinema volta a surgir como o resultado uniforme e universal do sonambulismo de um rebanho a que se dá o nome de “crítica”, omitindo todas as diferenças, quase sempre inconciliáveis, que se manifestam nesse mesmo trabalho.
Se havia algo de objectivo (entenda-se: eminentemente jornalístico) a referir sobre as relações entre a obra de Godard, as suas leituras e valorações, seria, precisamente, o seu profundo e perene efeito de divisão no território dos discursos críticos. Aliás, teria sido pertinente lembrar também que tal efeito começou com a geração de críticos, futuros cineastas da Nova Vaga francesa (Godard, Truffaut, Rohmer, etc.), que introduziram enormes clivagens na análise dos filmes, no seu enquadramento histórico e, em termos gerais, no pensamento do cinema — e para o cinema.
Permito-me, por isso, saudar a frontalidade intelectual de António-Pedro Vasconcelos que, numa intervenção televisiva (RTP3) a propósito da morte de Godard, se manteve fiel ao seu pensamento, considerando que, depois da Nova Vaga e dos acontecimentos de Maio de 68, Godard se tornou “maoísta”, destruindo tudo aquilo que seria o legado (a palavra é minha) do seu trabalho anterior. Pela minha parte, não poderia estar mais em desacordo com tal ponto de vista, mas é bom saber que há quem, serenamente, não se deixe envolver pela ditadura narrativa daquilo que “fica bem” dizer-se quando alguém morre.
Porque, em última instância, é isso que está em jogo — jogo de vida, jogo de morte. Que está a acontecer no nosso mundo mediático (ao qual, insisto, pertenço) para que a morte de qualquer personalidade com alguma dimensão pública, ainda que minimalista, seja maioritariamente tratada como uma espécie de missa sem sacerdote que reduz essa mesma personalidade a uma figura angelical que viveu num universo sem contrastes nem contradições?
O filme O Livro de Imagem, derradeira longa-metragem de Godard — a meu ver tão significativo para a modernidade cinematográfica como Les Demoiselles d’Avignon (1907), de Pablo Picasso, para a pintura do século XX — estreou-se nas salas portuguesas, com distribuição da Midas Filmes, no dia 6 de dezembro de 2018. Segundo os dados oficiais do ICA (Instituto do Cinema e do Audiovisual), O Livro de Imagem esteve em exibição seis semanas, até 16 de janeiro, tendo sido visto por um total de 1343 espectadores.
A pequenez de tal número é apenas uma variante de um fenómeno das últimas décadas: são muito poucos os que, realmente, viram os filmes de Godard. O certo é que, perante o clamor de exaltação e reverência suscitado pela notícia da sua morte, dir-se-ia que, depois do lançamento de Gabriela (16 de maio de 1977), os nossos horários nobres têm sido preenchidos apenas e só com filmes de Godard...
Num curtíssimo filme (2 minutos) que aborda uma fotografia da guerra da Bósnia — Je Vous Salue, Sarajevo (1993) —, Godard fala da cultura como a “regra” e da arte como a “excepção”. E refere alguns “objectos” que estipulam a regra que “todos dizem”. São eles: “cigarro, computador, t-shirt, televisão, turismo, guerra”. Acrescenta que “ninguém diz a excepção”. Porquê? Porque “isso não se diz, escreve-se: Flaubert, Dostoievski; compõe-se: Gershwin, Mozart; pinta-se: Cézanne, Vermeer; filma-se: Antonioni, Vigo. Ou isso vive-se e, então, é a arte de viver: Srebrenica, Mostar, Sarajevo.” E termina citando Louis Aragon (peço desculpa pela tradução literal): “Quando for necessário fechar o livro, será sem lamentar nada. Vi tanta gente viver tão mal e tanta gente morrer tão bem.”



Sempre me pareceu que muitas pessoas que rejeitam Godard (não me estou a referir a António-Pedro Vasconcelos, nem sequer a uma questão especificamente portuguesa), não o fazem por qualquer “gosto”, mas cedendo à lenda de um Godard “experimentalista”, alheio às convulsões do mundo. Em boa verdade, o que nele é mais radical, porventura mais incómodo, é o facto de, mal ou bem, nunca ter deixado de lidar com a vida e a morte, o indizível da morte e essa “arte de viver” que Bertolt Brecht (um dos seus mestres) considerava “a maior de todas as artes”.
O que é intolerável para a formatação mediática do nosso presente é que a arte não seja (nunca foi, nunca será) um consenso sancionado por serviços fúnebres, mas uma guerra de ideias. Na publicidade ao filme O Livro de Imagem, há um texto que começa com uma pergunta romântica: “Ainda te lembras como costumávamos treinar o nosso pensamento?” E termina com uma informação jornalística: “A guerra está aqui.”