quarta-feira, outubro 26, 2022

À procura das canções perdidas

Música e memórias: Julieta Laso filmada por Lucrecia Martel

Lucrecia Martel, a cineasta argentina de títulos como O Pântano ou Zama, regressa com um filme singular, envolvido com diversas tradições musicais: no seu centro está a cantora Julieta Laso — este texto foi publicado no Diário de Notícias (20 outubro).

Como definir Terminal Norte, da cineasta argentina Lucrecia Martel? Não será fácil, desde logo por uma razão métrica: trata-se de um objecto invulgar, uma média-metragem de 37 minutos, cujo lançamento reflecte o empenho com que alguns distribuidores independentes (neste caso, a Nitrato Filmes) têm tentado abrir o mercado a diferentes “formatos” e novas formas de difusão dos filmes.
Também não parece possível apresentar Terminal Norte como uma “consequência”, temática ou formal, dos filmes anteriores de Martel. Lembremos que a sua mais recente longa-metragem, Zama (2017), propõe uma metódica desmontagem do colonialismo espanhol no século XVII, e que no primeiro período da sua filmografia encontramos melodramas tão desconcertantes e sedutores como O Pântano (2001), A Rapariga Santa (2004) e A Mulher sem Cabeça (2008).
Que acontece, então, em Terminal Norte? Segundo notícias publicadas em fevereiro, por altura da passagem do filme no Festival de Berlim (cito Daniel Gorman, no site “In Review Online”), Martel acompanhou a cantora Julieta Laso a Salta, no norte da Argentina, com o objectivo de registar um dos seus concertos.
Na verdade, vivia-se um período de adiamento de muitas actividades por causa do covid e o concerto nunca se realizou. Assim, Martel optou por filmar o encontro de Laso com várias figuras de um universo musical tão rico quanto contrastado: algumas “copleras” (intérpretes das canções tradicionais, “coplas”), uma cantora trans, de seu nome Lorena Carpanchay, uma pianista, Noela Sinkunas, capaz de combinar o saber clássico com magníficas experimentações jazzísticas, etc.
São encontros sucessivos que, depois da apresentação, uma a uma, das personagens envolvidas, vão dando lugar a uma verdadeira antologia de canções perdidas (e reencontradas) no espaço da memória. Dir-se-ia um inclassificável programa de “variedades”, tanto mais insólito e envolvente quanto acontece numa rede de lugares que nunca se estabiliza: há um movimento de automóvel que percorre os vários cenários, performances em plena floresta, fogueiras que apelam a uma certa cumplicidade musical…
O resultado de tudo isto é a invenção de um espaço/tempo que só existe no cinema — e enquanto cinema. É certo que o filme não pode (nem quer) esconder o misto de arbitrariedade e improviso em que foi gerado, por vezes transmitindo a sensação de uma narrativa frágil, à deriva. Mas é também isso que lhe confere o encanto de um bloco-notas musical, uma pequena aventura vivida num ambiente de grande cumplicidade artística e afectiva.
Na trajectória de Martel, Terminal Norte será, talvez, um simples momento de passagem, em qualquer caso revelando um gosto visceral pela procura de uma realidade que importa documentar para lá de qualquer cliché pitoresco ou turístico. Entretanto, sabemos que ela trabalha já há algum tempo num documentário sobre Javier Chocobar, activista indígena que tentou que a sua comunidade não fosse afastada do seu território ancestral, tendo sido assassinado em 2009.