domingo, agosto 28, 2022

Blow-up ou o que vemos
quando vemos uma imagem?

Blow-up (1966)
— a organização do mundo passa sempre pelas suas imagens

O cinema de Michelangelo Antonioni envolve uma apurada reflexão sobre a vida das imagens: o seu legado é precioso — este texto foi publicado no Diário de Notícias (14 agosto).

A obra-prima que Michelangelo Antonioni filmou em Inglaterra, em 1966 — Blow-up / História de um Fotógrafo, com David Hemmings e Vanessa Redgrave —, persiste como uma verdadeira epopeia, íntima e perturbante, sobre a vida das imagens. Mais concretamente: sobre a relação que cada um estabelece, ou pode estabelecer, com uma determinada imagem.
No centro do filme está, justamente, a relação de um fotógrafo, de nome Thomas (Hemmings), com uma série de imagens que obteve num parque de Londres. Descobrindo, à distância, um homem e uma mulher, fotografa-os repetidas vezes, acabando por atrair a atenção da mulher (Redgrave) que tenta convencê-lo a dar-lhe o rolo da sua máquina… Resumindo muito e esquematizando ainda mais: mais tarde, ao revelar o rolo no seu estúdio, Thomas vê, atrás de um arbusto, algo que lhe parece um corpo inanimado. Através de sucessivas ampliações (blow-up), tenta descobrir o que, realmente, ficou inscrito na fotografia…
Escusado será dizer que esta é uma história pré-digital, porventura incompreensível para os espectadores que não conheceram directamente o universo das imagens em película e, em particular, não sabem o que era (e continua a ser) o tempo específico dessas imagens — desde o momento da sua obtenção até à impressão em papel, passando pelas tarefas de revelação.
Lembrar tal processo não é, de modo algum, um gesto banalmente museológico, ainda menos uma queixa nostálgica. É, isso sim, reconhecer que a existência de tais imagens não pode ser dissociada de uma percepção muito particular do tempo — e, por isso mesmo, de uma outra vivência das durações humanas.
Agora, vivemos um tempo em que uma qualquer imagem pode ser obtida num qualquer lugar do planeta para, segundos depois, estar a ser vista num qualquer outro lugar. Na melhor das hipóteses, trata-se de uma maravilha informativa; na pior, de uma vertigem imaterial que nos faz esquecer que uma imagem existe sempre a partir de um contexto.
Que acontece quando a noção de contexto se dilui? O efeito imediato, infinitamente perverso, tem qualquer coisa de formatação das imagens e do seu pensamento: de modo implícito (por vezes explícito), sugere-se que cada imagem tem apenas “um” significado e, mais do que isso, o contexto seria irrelevante porque essa imagem significa sempre a “mesma” coisa. Na prática, não haveria diferença — informativa ou conceptual, descritiva ou simbólica — entre um auto-retrato de Rembrandt reproduzido num livro de pintura e o mesmo auto-retrato utilizado num concurso televisivo em que se trata de encontrar uma resposta cuja alternativa poderá ser, por exemplo, o “menino da lágrima”…
É essa “neutralização” obscena das imagens que está em jogo no processo que Vanessa Bryant interpôs contra as autoridades de Los Angeles. Em causa estão as fotografias obtidas por agentes dessas autoridades na sequência do acidente de um helicóptero (ocorrido em Calabasas, Califórnia, no dia 26 de janeiro de 2020) em que faleceram o seu marido Kob Bryant, figura lendária do basquetebol dos EUA, a sua filha Gianna e mais sete pessoas. Segundo Vanessa Bryant, funcionários do Departamento do Sheriff de Los Angeles teriam partilhado fotografias dos cadáveres em vários contextos (incluindo numa conversa com o empregado de um bar). Para lá da destruição das imagens, a queixa envolve exigências de reparação por negligência, desrespeito de direitos civis e violação de privacidade.
Michelangelo
Antonioni
Seja qual for o desenlace do julgamento (que deverá estar concluído nas próximas semanas), esta é uma situação cujo valor sintomático não pode ser menosprezado. A saber: nenhuma imagem é um “objecto” intemporal, exterior à história dos indivíduos e das colectividades. Ver ou dar a ver uma imagem — analógica, digital ou o que quer seja que o futuro inventar — é sempre um acto social que, no limite, contém uma dimensão política.
[Notícia de 26 de agosto: CNN]
Porquê política? Porque as imagens são elementos interiores à própria organização do nosso mundo, seus valores e comportamentos. Vale a pena, por isso, ver ou rever o filme de Antonioni, aliás disponível na plataforma HBO Max. É uma boa notícia, mas, infelizmente, Blow-up surge apenas com esta informação lacónica: “Um fotógrafo de Londres acredita ter capturado um homicídio.” Sem mais… O génio de Antonioni? O lugar central de Blow-up no cinema moderno? A memória do fenómeno social que o filme protagonizou nos anos 60? Nada de nada.
Há, de facto, um misto de futilidade e indiferença no tratamento da nobre história dos filmes e do cinema por alguns agentes do streaming. Para lá de todas as diferenças factuais e de contexto, este é mais um sintoma da banalização quotidiana das imagens e do metódico esvaziamento da arte de ver. E querer ver.