segunda-feira, julho 18, 2022

Sharunas Bartas
— tragédia e realismo

Alina Zaliukaite-Ramanuskiene, notável actriz do cinema da Lituânia

O realizador Sharunas Bartas regressou ao mercado português com Na Penumbra, evocação de tempos conturbados pós-Segunda Guerra Mundial. Ou como a tragédia nasce, aqui, de um depurado realismo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (7 julho), com o título 'Memórias trágicas da nossa Europa'.

Sharunas Bartas, lituano, nascido em 1964, é um cineasta que pudemos descobrir num contexto muito particular. Já lá vão trinta anos: a sua primeira longa-metragem, Três Dias (1991), foi o grande acontecimento da Semana dos Novos Realizadores do Fantasporto de 1992. A partir daí, ainda que de modo incompleto, o seu trabalho continuou a marcar presença nas nossas salas, até porque Portugal tem alguma ligação com a produção dos seus filmes: aconteceu com Freedom (2000), cujos produtores foram Paulo Branco e o próprio Sharunas Bartas; volta a acontecer agora com Na Penumbra, seleccionado para Cannes/2020 (o ano em que o festival não se realizou devido à pandemia), resultante de uma coprodução europeia a que surge associado o nome da empresa Terra Treme.
Dizer que Na Penumbra fica, desde já, como uma das grandes estreias deste verão cinematográfico decorre, em primeiríssimo lugar, do reconhecimento do misto de rigor narrativo e contundência temática da obra de Sharunas Bartas. Ao mesmo tempo, tal reconhecimento não deixa de envolver uma bizarra ironia: nada do que aqui possamos encontrar envolve os valores (ou a falta deles) dos chamados “espectáculos de verão” — estamos perante um exemplo modelar do labor de um dos grandes solitários do cinema contemporâneo, prosseguindo uma obra metódica e obsessiva, sempre visceralmente ligada às convulsões da nossa Europa.
A tragédia enraiza-se na terra, ou melhor, na pertença ameaçada a um lugar. Assim, a acção nasce da herança traumática da Segunda Guerra Mundial. Estamos em 1948 e deparamos com a oposição de dois grupos: os soldados soviéticos que ocupam a Lituânia e a resistência dos “partisans”, eles próprios marcados pela traição dos que pactuam com os invasores.
Sharunas Bartas não procura, de modo algum, os efeitos típicos de um tradicional “filme de guerra”. Na Penumbra desenvolve-se mesmo a partir dos elementos de um drama rural, centrado na figura fascinante e vulnerável do jovem Untè, de 19 anos (Marius Povilas Elijas Martynenko): por um lado, ele vive a condição de filho adoptivo, a cargo de um pai e uma mãe (Arvydas Dapsis e Alina Zaliukaite-Ramanuskiene, todos notáveis actores) assombrados pela ruptura do seu próprio espaço conjugal; por outro lado, as tensões militares vão empurrar Untè para uma iniciação cruel na violência obscena da guerra…
De tal modo que, muito antes de nos dar a ver qualquer cena de combate, Sharunas Bartas desenha um fresco desencantado de um tempo em que as relações humanas — a começar pelos precários laços familiares — se encontram ameaçadas por uma violência que, de uma maneira ou de outra, se infiltra em todos os recantos do quotidiano. Lembramo-nos, por isso, do seu brilhante filme anterior, Geada (2017), centrado na viagem de um par de jovens lituanos que se oferecem para um transporte de ajuda humanitária para a Ucrânia… Num caso como noutro, o depurado realismo de Sharunas Bartas não é estranho aos fantasmas de que (também) se faz a história.