Lyja Maknaviciute e Mantas Janciauskas |
Grande filme do lituano Sharunas Bartas: Geada confronta-nos com a instabilidade conceptual da própria Europa — este texto foi publicado no Diário de Notícias (4 Março).
Há um velho lugar-comum, de uma só vez cinematográfico e político, segundo o qual os filmes históricos são aqueles que “transcrevem” os acontecimentos de que se faz a própria história. Exemplo corrente: A Hora Mais Negra, sobre as primeiras acções do governo de Winston Churchill face à agressão nazi. A ideia de “transcrição” tem, aliás, a sua expressão mais banal na interpretação de Gary Oldman, mimando, com evidente competência técnica, o tom de voz, os gestos e poses de Churchill.
Vale a pena alargar as hipóteses de reflexão sobre estas questões, citando um assombroso filme, algo marginal, esta semana lançado no mercado português. Chama-se Geada, tem assinatura do lituano Sharunas Bartas, e foi, em 2017, um dos acontecimentos marcantes da Quinzena dos Realizadores, em Cannes. Aliás, será oportuno recordar que Bartas não é um cineasta estranho ao nosso país: descobrimo-lo, em 1992, na Semana dos Novos Realizadores do Fantasporto e tem vários filmes produzidos por Paulo Branco.
Digamos que Geada é um filme que recusa qualquer ilusão de transparência do próprio devir histórico. Desde logo porque a história não se oferece para ser “transcrita”: cada acontecimento, cada personagem, cada acção surge mesmo como um enigma que questiona, precisamente, o nosso lugar histórico. Ou ainda: quais as relações entre o colectivo e o individual?
O filme narra a saga de dois lituanos, um homem (Mantas Janciauskas) e uma mulher (Lyja Maknaviciute), que se oferecem para transportar ajuda humanitária para a Ucrânia. Os sinais de guerra vão-se adensando à medida que avançam, gerando um perturbante efeito de perda de coordenadas — Bartas filma no coração da Europa um conjunto de acções e peripécias que, implicitamente, nos levam a perguntar o que significa ser europeu.
Que acontece, então? Algo que nos permite reconhecer o cinema como uma linguagem específica que está muito para além (ou aquém) da ingenuidade “naturalista” que as reportagens televisivas tantas vezes favorecem. Assim, Geada é um objecto visceralmente realista que, afinal, nos confronta com a dificuldade de definição da realidade a que pertencemos.
Não é, entenda-se, um filme politicamente fácil. Apresenta-se mesmo habitado por uma dúvida metódica, distante de qualquer discurso panfletário: como definir um espaço europeu que, em última instância, parece não conseguir estabilizar a sua própria história? Paradoxalmente ou não, Bartas declara, assim, o seu amor pela Europa e pelas singularidades dos seus habitantes.