domingo, julho 24, 2022

O dia, a noite e a beleza de tudo isso

Aconteceu em 1973:
Jean-Pierre Léaud, Françoise Lebrun e Bernadette Lafont

Quase meio século depois, La Maman et la Putain leva-nos a lidar com um valor que perdeu cotação social: a beleza — este texto foi publicado no Diário de Notícias (10 julho).

Perante a reposição, em magnífica cópia restaurada, de La Maman et la Putain/A Mãe e a Puta (1973), de Jean Eustache — começando por Lisboa (Nimas) e Porto (Trindade) —, não consigo desligar o reencontro com o filme daquilo que é a minha história particular enquanto espectador de cinema. Durante quase meio século, este é um filme que me tem acompanhado como uma referência cristalina e um fantasma indecifrável.
Jean Eustache
Em boa verdade, quando o vi pela primeira vez, nos tempos heróicos do Festival da Figueira da Foz, não o compreendi. Não que isso me leve agora a pedir perdão por ter tido 20 anos, muito menos a alimentar o cliché segundo o qual a nossa história individual vai consolidando uma clareza mental sancionada pelo passar dos anos… Pensar o envelhecimento exige-nos mais (e melhor) do que isso.
Acontece que La Maman et la Putain é um daqueles objectos estranhos e fascinantes, capaz de encarnar uma duplicidade rara na história do cinema. Assim, tudo nele nos remete para o presente da sua fabricação, numa dimensão de testemunho em que os artifícios da ficção envolvem um incrível poder documental; ao mesmo tempo, esse presente parece ter-se eternizado, levando-nos a reencontrar o filme como sinal ambíguo do aqui e agora em que o revemos.
Nele reconhecemos as marcas de um tempo em que, para o melhor e para o pior, uma geração (a minha, hélas!) viveu e protagonizou um singular turbilhão ideológico e moral. O errante e errático Alexandre — interpretado por Jean-Pierre Léaud como se o fim do mundo dependesse da justeza da sua relação com a câmara de filmar — é esse ser condenado a lidar com a herança simbólica das ideias “libertárias” da década de 1960, agora contaminadas pela crueza de um tempo sem promessas de redenção. Ele evoca mesmo algumas atribulações recentes — a Revolução Cultural Chinesa, Maio de 68, os cabelos compridos, etc. — para justificar a elegância e o egoísmo da sua tese: “Estou convencido de que tudo o que tem acontecido no mundo nestes últimos anos tem sido completamente contra mim.”
Seria, por isso, ceder à mediocridade mediática dos tempos (2022, entenda-se) reduzir tudo isso a um qualquer cenário militante segundo o qual o narcisismo de Alexandre vai sendo desmontado pela energia das duas mulheres — Veronika (Françoise Lebrun) e Marie (Bernadette Lafont) — que pontuam as suas angústias quotidianas. Se há noção que, em 1973 como agora, o trabalho de Eustache desmente é a que se refugia num esquematismo “masculino/feminino” segundo o qual qualquer personagem masculina está condenada a ser estandarte e cúmplice de todos os dramas que as personagens femininas possam enfrentar.
Aliás, sublinhando uma ironia interior ao próprio filme, vale a pena lembrar as poucas imagens em que coexistem Alexandre, Veronika e Marie, incluindo a cena (totalmente assexuada) em que os vemos na mesma cama. De facto, perpassa por La Maman et la Putain a sensação, de uma só vez desencantada e movida pela curiosidade, de que não há nada de explicitamente sexual que possa esgotar, muito menos resolver, as convulsões vividas pelo trio. Alexandre di-lo com poética mágoa: “Ela era bela como o dia, mas eu gostava das mulheres belas como a noite.”
Cada uma à sua maneira, Veronika e Marie são sublimes de mistério. Aquilo que elas devolvem ao olhar de Alexandre não encontra outra forma de materialização que não seja na avalanche de palavras. Estamos, de facto, perante uma “contradição” formal que poucos têm sabido explorar como Eustache o fez: ao realismo terno dos lugares contrapõe-se a exuberância romanesca dos diálogos (por certo dos mais extraordinários que podemos encontrar em toda a história do cinema).
Reabrindo, assim, o dossier La Maman et la Putain, talvez possamos dizer que o filme de Eustache desenha um painel da condição humana cujo ponto de fuga é a palavra. A saber: a possível intensidade da fala, por vezes eminentemente erótica, no interior de um mundo em que a vulgaridade do falar (veja-se o horror do Big Brother televisivo) impõe a sua lei.
Na sessão de La Maman et la Putain em Cannes, a abrir a secção de “Clássicos” deste ano (17 de maio), Françoise Lebrun deixou uma sugestão aos espectadores, sobretudo os mais novos, aconselhando-os a esquecer tudo o que foi escrito sobre o filme. Ou seja: teremos que partir do zero para sermos dignos da beleza magoada que abençoa Alexandre, Veronika e Marie.