sábado, julho 02, 2022

Na cama com Maud

Memórias de 1969:
Françoise Fabian e Jean-Louis Trintignant filmados por Rohmer

Lembrando Jean-Louis Trintignant: do seu trabalho como actor, nunca vamos esquecer a arte subtil de valorizar as palavras — este texto foi publicado no Diário de Notícias (19 junho).

Que se passa? Que vemos neste fotograma? Nada de nada, dirá o jovem espectador de cinema que passou o tempo a colocar “likes” no seu telemóvel, saindo com a cabeça a abanar de uma qualquer barulheira de super-heróis, ignorando tragicamente — para sua própria tragédia, entenda-se — que um filme não é uma avalanche de imagens descartáveis e ruídos ensurdecedores.
Que se passa, realmente? Que história passa por este fotograma? Ela chama-se Maud e, depois de um jantar e uma noite de conversa em sua casa, acabou por acolher um dos convidados, Jean-Louis. Assim mesmo: acolheu-o, por fim, na sua cama… Nada aconteceu, dirá o mesmo incauto jovem sugado pelo ecrã do telemóvel, desamparado e desconhecedor dos seus limites, correndo o risco de se confundir com o espectador viciado em novelas ou o leitor obcecado pela imprensa dos “famosos”. Assim é a miséria cultural dos nossos dias: se estão na mesma cama e não houve um qualquer evento genital a justificar registo, então nada aconteceu…
Supondo que, aqui chegados, pelo menos dois terços dos leitores já me abandonaram, desisto do meu sermão cinéfilo, reconhecendo a sua impotência. Lembro apenas o mais importante: este é um momento de A Minha Noite em Casa de Maud, obra-prima de 1969, realizada por Eric Rohmer, um dos nomes de eleição da Nova Vaga francesa (reposto há cerca de um ano entre nós, o filme está actualmente disponível na plataforma Filmin).
Ela é Françoise Fabian, presença tão discreta quanto admirável na história do cinema francês das últimas seis décadas. Ele é Jean-Louis Trintignant, corpo sempre habitado por um misto imponderável de transparência e mistério, para alguns gerado nas zonas mais recônditas de uma invencível e muito juvenil timidez — soubemos da sua morte no dia 17, contava 91 anos.
A Minha Noite em Casa de Maud
pode servir de emblema do labor de Trintignant. Porquê? Porque aquilo que Rohmer coloca em cena é a poderosa erotização da palavra. A noite de Jean-Louis em casa de Maud é, afinal, um teatro de desejos e razões em que a exigência moral do catolicismo que ele professa se confronta, ou melhor, literalmente dialoga com a inteligência ágil e livre dela. Se quisermos jogar com o uso corrente das palavras, diremos com desconcertante objectividade: Jean-Louis não dorme “com Maud”, mas acaba por dormir “na cama dela”.
Poderíamos desviar o assunto para a cegueira cinéfila de alguns feminismos contemporâneos que insistem em proclamar que, no cinema, precisamente, as personagens de mulheres singulares e complexas são uma invenção de anos recentes, pós-#MeToo — continuo sem perceber o que é que essa ignorância de mais de 100 anos de história do cinema traz de saudável ao pensamento das relações masculino/feminino.
O que podemos contemplar e, de alguma maneira, questionar através da composição de Trintignant é uma outra dimensão, de uma só vez artística e filosófica, que os mesmos feminismos raras vezes enfrentam (contaminando muitos discursos de homens). A saber: não faz sentido problematizar o que quer que seja de feminino como se do “outro lado” mais não houvesse do que uma tribo unificada de personagens masculinas, obrigatoriamente esquemáticas e indiferentes ao território das mulheres.
Corrigindo: esta formulação “territorial” nem sequer faz sentido face à riqueza temática e formal do cinema de Rohmer. Sim, é verdade que a sua obra lida com o aparato moral em que, conscientemente ou não, vivem homens e mulheres (A Minha Noite em Casa de Maud, recorde-se, integra uma série, realizada entre 1963 e 1972, de “Seis Contos Morais”). Mas não é menos verdade que aquilo que ele filma é a insuperável estranheza do “outro lado”, na certeza de que nada disso se esgota ou confunde apenas com a existência de um “outro sexo”.
Ao reconhecimento de que “tudo é sexual” (sob o signo de Freud, ma non troppo), Rohmer acrescenta uma nota de ironia e distanciamento, levando-nos a reconhecer que o sexual não esgota o “todo” da experiência humana. E é nesse cruzamento entre a evidência dos corpos e a imponderabilidade do acto de pensar que o seu cinema integra o maravilhoso pudor de um actor como Trintignant.
Vimos esse mesmo pudor em filmes tão diversos como O Conformista (Bernardo Bertolucci, 1970), Finalmente Domingo! (François Truffaut, 1983) ou Três Cores: Vermelho (Krzysztof Kieslowski, 1994). Talvez possamos dizer que, no ecrã, Trintignant soube expor as singularidades de alguns homens, sem nunca ceder a qualquer estereótipo do masculino. Neste tempo em que o aquário mediático em que vivemos menospreza a infinita complexidade que as relações humanas podem envolver, precisamos da sua subtileza. A começar pelo amor das palavras.