segunda-feira, julho 11, 2022

A Lei de Teerão
— a lei da cidade e a consciência do mal

Tragédia em Teerão:
Navid Mohammadzadeh, um actor fora de série

Da produção cinematográfica do Irão continuam a chegar propostas de invulgar ousadia temática e energia narrativa: é agora o caso de A Lei de Teerão, um retrato contundente da acção da polícia face aos circuitos da droga, com assinatura do jovem Saeed Roustaee — este texto foi publicado no Diário de Notícias (30 junho).

Para lá do ruído mediático das campanhas de super-heróis e afins, como vai o nosso conhecimento do “cinema do mundo”? Apesar dos desequilíbrios do mercado português, importa reconhecer que vamos tendo a possibilidade de descobrir alguns filmes de diversas origens geográficas e culturais: do Irão, por exemplo, em particular da sua chamada “nova vaga”. A referência de Abbas Kiarostami (1940-2016) é, obviamente, incontornável, mas podemos citar também autores como Jafar Panahi, Majid Majidi ou Moshen Makhmalbaf. Entretanto, o nome de Asghar Farhadi tornou-se o mais conhecido junto das plateias de todo o mundo, já que realizou os dois únicos títulos iranianos que arrebataram o Oscar de melhor filme internacional: Uma Separação (2011) e O Vendedor (2016).
Pois bem, é altura de acrescentarmos a essa lista o nome de Saeed Roustaee. E com grande destaque: o seu filme A Lei de Teerão (2019), a partir de hoje [30 junho] em exibição, é um prodígio de encenação e vibração emocional, retratando a acção de um grupo de polícias contra o flagelo social das drogas. O título internacional — Just 6.5 — reflecte a angústia de um diálogo entre esses polícias, avaliando a dimensão do flagelo. Ou seja: no Irão existem “apenas” 6,5 milhões de toxicodependentes.

Drama e tragédia

Um crítico dos EUA (Peter Debruge: Variety, 7 nov. 2019) condensou de forma sugestiva o impacto de A Lei de Teerão, apelidando-o de versão iraniana do clássico The French Connection/Os Incorruptíveis contra a Droga (1971), de William Friedkin. As diferenças são muitas, mas é um facto que estamos perante o mesmo gosto pela energia física, dramática e política de uma matriz em que todas as personagens, longe de qualquer maniqueísmo fácil, surgem marcadas por uma surpreendente complexidade.
O brilhante argumento de A Lei de Teerão, também da responsabilidade de Roustaee, organiza um “twist” — não exactamente factual, mas dramatúrgico — que faz com que a sua duração se apresente, por assim dizer, “repartida” por duas personagens principais. Tudo começa com a brigada de Samad Majidi (Payman Maadi, actor que vimos, por exemplo, em Uma Separação) e uma rusga que desemboca numa incrível perseguição pelos becos de um bairro pobre — tal sequência basta, aliás, para definir um olhar de cineasta, capaz de usar os materiais da ficção através de um obsessivo realismo documental. A droga que encontram leva Majidi a reforçar o processo de investigação que há muito tem um objectivo fulcral: localizar e prender Nasser Khakzad (Navid Mohammadzadeh, prodigioso actor), um dos principais líderes do tráfico de drogas em Teerão…
Nada disto é linear, muito menos determinista. Desde logo, porque a miséria dos bairros em que vivem muitos toxicodependentes, e também o cenário dantesco da prisão em que Khakzad é detido, superam qualquer tentativa de descrição objectiva. Depois, porque nesse inferno de infinitas atribulações ninguém existe como personagem banalmente “simbólica”.
Majidi está assombrado por múltiplos problemas, tentando obter uma promoção que, segundo ele, irá apaziguar a sua vida conjugal, sendo a certa altura acusado de ter desviado droga que capturou… Quanto a Khakzad, conhecemo-lo numa tentativa de suicídio, dir-se-ia vencido pela própria riqueza fenomenal que acumulou, para a pouco e pouco sabermos do seu passado enraizado na mesma abjecção social que o filme vai expondo — a sua consciência do mal que protagoniza confere-lhe, no plano cinematográfico, a dimensão de uma personagem genuinamente trágica.

O valor da palavra

Saeed Roustaee filma o sistema das drogas, não apenas como uma entidade maléfica capaz de ameaçar a consistência da sociedade, mas também como um elemento perverso que, através de mecanismos de profunda crueldade, acabou por gerar o seu próprio tecido social. Daí o misto de contundência realista e desencanto moral que contamina todos os momentos de A Lei de Teerão.
Podemos, talvez, filiar o filme numa tradição do género “policial” que, na sua transversalidade, encontramos do cinema asiático até Hollywood, obviamente passando por diversas cinematografias europeias. Em qualquer caso, a classificação é redutora, já que Roustaee constrói grande parte das acções do filme privilegiando o valor dramático da palavra: os diálogos pesam de forma decisiva nos ambientes de A Lei de Teerão, no limite definindo o labor de cada uma das personagens para tentarem encontrar um lugar seguro nessa “lei” que emana da concepção ideal, ou idealizada, da própria cidade.
Resta dizer que nada disto é estranho à convulsiva saga familiar que encontramos em Leila’s Brothers, o filme que Roustaee realizou depois de A Lei de Teerão, há pouco mais de um mês revelado na secção competitiva de Cannes — foi, aliás, um dos grandes filmes do festival que o júri presidido por Vincent Lindon cometeu a “proeza” de não premiar. Resta ficarmos pelo mais simples: nascido em Teerão em 1989, Roustaee é um nome a inscrever na lista dos mais jovens e mais talentosos cineastas contemporâneos.