Nobody's perfect... |
Jessica Chastain lidera um elenco apostado em refazer James Bond em tom “feminino”: não vem daí mal ao mundo, mas a imaginação cinematográfica está longe de ser brilhante — este texto foi publicado no Diário de Notícias (27 janeiro).
O que significa Agentes 355? Digamos que quando um filme nos faz encalhar na “mensagem” do seu título algo vai mal (no original: The 355). Até porque, lá para o meio da acção, vamos deparar com uma cena, dramaticamente dispensável, em que uma das personagens vem explicar que se trata de um epíteto lendário ligado à história da espionagem no feminino…
Eis a eventual chave da questão: a possibilidade de “mudar o sexo” das histórias de espiões. Não exactamente regressando ao esplendor romântico de outros tempos — lembramo-nos, claro, de Greta Garbo em Mata Hari (1931) —, antes apostando numa derivação algo requentada de James Bond, agora com mulheres a defender a humanidade de uma arma (informática, pois claro) capaz de destruir tudo e mais alguma coisa.
Há aqui um daqueles simplismos ideológicos que, atrevo-me a pensar, os feminismos vários que têm proliferado no recente cinema americano teriam interesse em questionar — e nós com eles. A saber: porque é que um banal filme de espionagem com heróis masculinos passa a ser um manifesto artístico (e, nessa medida, um “statement” moral) quando são mulheres a protagonizar a mesma banalidade?
Enfim, esta descrição pessimista não faz justiça à excelência dos talentos envolvidos. A começar por Jessica Chastain, actualmente em destaque em duas ofertas do “streaming”: a mini-série Scenes from a Marriage (HBO) e o filme Jogo da Alta-Roda (Prime Video). Foi ela que, na dupla condição de actriz e produtora, propôs o conceito de uma variação feminina sobre 007 e a série Missão Impossível ao realizador Simon Kinberg, depois de com ele ter rodado X-Men: Fénix Negra (2019). Chastain e as protagonistas inicialmente escolhidas — Penélope Cruz, Marion Cotillard, Fan Bingbing e Lupita Nyong’o — estiveram mesmo na edição de 2018 do Festival de Cannes para promover o projecto de The 355.
Os resultados são reveladores de uma bizarra insensatez. É verdade que, tentando explorar uma lógica “intimista” que ganhou força nos mais recentes títulos de James Bond — com destaque para os que foram dirigidos por Sam Mendes: Skyfall (2012) e Spectre (2015) —, aqui encontramos alguns momentos de sofisticada vibração emocional, sobretudo a cargo de Chastain e Diane Kruger (que, entretanto, substituíra Cotillard). Mas não é menos verdade que a “obrigação” de tudo pontuar com soluções estereotipados de acção física (?) vai diminuindo as singularidades com que, apesar de tudo, as personagens femininas foram concebidas — ainda que, convenhamos, Penélope Cruz não consiga emprestar verosimilhança à sua terapeuta colombiana envolvida numa operação da CIA…
Nos momentos mais felizes, Agentes 355 faz lembrar um certo misto de drama e ironia que marcou alguns notáveis filmes de espiões feitos há cerca de meio século — penso, por exemplo, em Os Três Dias do Condor (1975), de Sydney Pollack. É pena que o projecto se vá refugiando num estilo convencional que Simon Kinberg aplica com a eficácia de um tarefeiro sem imaginação. Como se prova, é um risco confiar nos homens.