A saga dos super-heróis vai-se instalando na temporada Primavera/Verão do nosso mercado cinematográfico. X-Men: Fénix Negra prolonga uma BD da Marvel, encenando as aventuras de um grupo de mutantes envolvidos na meritória tarefa de sempre: salvar a humanidade do apocalipse — texto publicado no Diário de Notícias (6 Junho).
A actual ordem das coisas assim o impõe: quando a Primavera começa a vestir-se com os adereços do Verão, os super-heróis chegam às salas de cinema. Não é uma tradição narrativa, muito menos o resultado de qualquer política cultural. Apenas a recriação de um modelo de mercado, de tal modo poderoso e global que nas últimas décadas nos levou a deixar de pensar (pelo menos pensar...) em modelos alternativos.
Dark Phoenix |
Dito de outro modo: aí está o 12º título da “franchise” produzida em torno do grupo de super-heróis que responde pelo nome de X-Men. Chama-se X-Men: Fénix Negra e pode resumir-se numa sinopse válida para quase todos os filmes do género que surgiram nos últimos anos. A saber: ameaçado por uma entidade extra-terrestre, o mundo está à beira do apocalipse e os nossos heróis, felizmente, lutam por garantir a sobrevivência da raça humana...
Para o melhor ou para o pior, há que reconhecer que este tipo de filmes virou do avesso essa “fábrica de sonhos” que foi Hollywood. A grande aventura já não se faz com heróis em que ousadia rima com ironia, à maneira do saudoso Indiana Jones, muito menos através de figuras arrancadas às páginas da história ou do romance, da dimensão épica de Lawrence da Arábia ou Doutor Jivago (heróis de duas super-produções da década de 1960, ambas assinadas por David Lean).
O poder narrativo passou, quase por inteiro, para as companhias que transformaram as suas personagens da banda desenhada em rentáveis “franchises” cinematográficas. Assim, X-Men: Fénix Negra é mais um título com chancela Marvel, neste caso produzido pela 20th Century Fox, estúdio que, em 1994, comprou os direitos de adaptação da BD de Stan Lee e Jack Kirby (lançada em Setembro de 1963), tendo estreado o primeiro filme da série, intitulado apenas X-Men, no ano 2000.
Entretanto, na prática, o filme agora em estreia pertence já à Walt Disney Company (depois da aquisição da Fox pela Disney, consumada em Março deste ano). Será, em princípio, o derradeiro da série, estando prevista uma derivação (“spin-off”) para 2020, com o título The New Mutants.
Mesmo quando os resultados não superam a rotina industrial, um aspecto curioso na evolução destas sagas é o facto de nelas se explorarem modelos de heroísmo que estão muito para além das mais clássicas personagens solitárias, cada uma delas transportando os seus traumas e utopias. Nesta perspectiva, o novo filme aposta numa aventura colectiva algo semelhante ao recente Vingadores: Endgame (2019), outro produto Marvel/Disney.
O que lança a história de X-Men: Fénix Negra é mesmo a possibilidade de uma súbita desagregação do grupo. Lá encontramos as emblemáticas figuras do pacifista Professor X (James McAvoy), o poderoso Magneto (Michael Fassbender) ou essa mutante com permanente capacidade de transfiguração física que é Mystique (Jennifer Lawrence)... Aliás, são todos mutantes, tal como Jean Grey, dotada de poderes telepáticos e telecinéticos — ela é, para todos os efeitos, a personagem central, sendo a respectiva intérprete, a inglesa Sophie Turner, um dos trunfos promocionais do filme, depois da sua consagração internacional como Sansa Stark na série televisiva A Guerra dos Tronos.
Sophie Turner |
Quando Jean Grey é tocada por uma misteriosa força cósmica, os seus poderes são ampliados de forma dantesca, para além da sua própria vontade... assim nascendo a Fénix Negra. Mais do que isso: o seu carácter maligno apresenta-se perversamente ampliado pela figura de Vuk (Jessica Chastain), uma “alien” proveniente de uma civilização apostada em ajustar contas com os humanos e, mais do que isso, capaz de manipular o comportamento de Jean, virando-a contra os outros elementos dos X-Men. Para esses elementos, o drama instalado decorre da ameaça que ela passou a representar: salvar Jean significará perder o mundo?
Claro que um objecto como X-Men: Fénix Negra é gerado por um sofisticado sistema de produção. O realizador estreante, Simon Kinberg (inglês, 45 anos), é um profissional especializado neste domínios, com várias contribuições para a série “X-Men”, quer como argumentista, quer como produtor. É mesmo detentor de uma nomeação para melhor filme do ano, enquanto coprodutor de Perdido em Marte (2015), de Ridley Scott.
Mas neste universo de mutantes, o risco de alguma mudança não é moeda corrente... Francamente desconcertante é o esbanjamento dos elementos dramáticos que, apesar de tudo, o filme tenta colocar em jogo. Assim, o capítulo da infância de Jean, com o trauma da morte dos pais e o seu acolhimento pela “escola de heróis” dirigida por Charles Xavier, o Professor X, parece lançar X-Men: Fénix Negra no sentido, pelo menos, de alguma vibração emocional...
O certo é que vai prevalecendo a sensação de que objectos como este resultam, em última instância, das rotinas dos departamentos de efeitos especiais. De tal modo que, a partir de certo momento, parece que aos actores apenas foi pedido que façam uma pose espantada (?) perante o “barulho das luzes” em que surgem digitalmente envolvidos... Quando entre esses actores está gente tão talentosa como Michael Fassbender ou Jessica Chastain, é caso para perguntar se alguém reaparou no desperdício humano e artístico que tudo isto envolve.