A publicidade situa-nos num mundo idealizado que quase ninguém questiona: o certo é que, de alguma maneira, todas as imagens são políticas — este texto foi publicado no Diário de Notícias (2 janeiro).
Na infinita multiplicidade de registos que circulam pelo mundo audiovisual, os trabalhos publicitários são um verdadeiro tabu. Não de acordo com esse infantilismo jornalístico que, cada vez que uma figura da cena política recusa avançar com alguma informação supostamente obrigatória, de imediato convoca a palavra “tabu”, arrastando um misto de expectativa e censura moral. O tabu publicitário envolve algo de incomparavelmente mais fundo: por princípio, a “sociedade” e os seus obsessivos “escrutínios” não questionam as representações da publicidade, seja qual for o respectivo domínio, do carácter redentor do espaço familiar até ao conceito compulsivo de festividade associado à juventude.
Um dos exemplos clássicos de impostura das encenações publicitárias é a forma corrente de apresentação dos novos modelos de automóveis. Exemplo benigno, entenda-se: a palavra impostura não decorre de qualquer dúvida sobre as qualidades específicas dos produtos publicitados. Tem a ver, isso sim, com tudo aquilo que nas imagens (e sons) é apresentado como a utilização futura do produto em causa pelo potencial consumidor. Assim, na esmagadora maioria dos anúncios de automóveis, não só não há outros automóveis, como tudo acontece em espaços da mais absoluta solidão. Tráfego? Estradas congestionadas? Cidades habitadas por pessoas? Nada de nada: o automóvel que podemos comprar será o único do planeta Terra…
Há outra maneira de dizer isto: a idealização do produto que se tenta vender envolve (depende mesmo de) uma redução da realidade, seja ela qual for, a uma perversa abstração. Como se vivêssemos, não num mundo em que a publicidade é um acto de linguagem, mas sim num universo “alternativo” que a publicidade sanciona porque, no limite, foi por ela inventado. Os exemplos são intermináveis e, convém não esquecer, quotidianos: da família que irá desfrutar do novo ambientador de odores florais ao adolescente que se “socializa” através do seu telemóvel, todos embarcam, ou podem embarcar, na felicidade publicitada.
Eis um esclarecedor contraponto: um cartaz com chancela da Big Cat Rescue, organização não lucrativa da cidade de Tampa, California, que possui um santuário para felinos selvagens. Concebido por Michael Schillig, da agência publicitária PPK, também sediada em Tampa, o cartaz distingue-se por uma lógica informativa, pedagógica e, em última instância, política. Nessa medida, claro, não pode ser confundido com as motivações de uma qualquer intervenção publicitária sobre os méritos de um aspirador ou as proezas de um desodorizante…
Aliás, não é isso que está em causa. Ou melhor, corrijo: é precisamente isso que está em causa — não em função da “coisa” que se dá a conhecer, antes através da linguagem que se utiliza e, muito em particular, do modo como essa linguagem concebe (ou não) o destinatário (cada um de nós) como sujeito activo, capaz de ver, compreender e pensar.
De que se trata, então? De chamar a atenção para a futilidade e, mais do que isso, a irresponsabilidade de tratar os tigres bebés como meros objectos de uma “experiência táctil”. Na base do cartaz, recorda-se mesmo que esses tigres recém-nascidos são muitas vezes “retirados às mães logo à nascença e explorados para renderem grandes lucros”. Com consequências brutais: “Quando se tornam demasiado perigosos para receberem festas, podem ser vendidos, abandonados ou mesmo mortos” (no site da Big Cat Rescue, podemos aceder a imagens dos tratadores dos pequenos felinos, em fascinante proximidade com os animais, evitando tocá-los com as mãos).
O espantoso cartaz da Big Cat Rescue dá-nos a ver a vibração física — que é uma forma de intimidade — de uma entidade que existe através do nosso olhar, dos nossos gestos e, uma vez mais, das nossas políticas. “Desenhado” com mãos humanas, o rosto do tigre surge, assim, desprovido de qualquer carácter pitoresco, muito menos anedótico. Não é um boneco de peluche para ser acariciado e rapidamente descartado, antes um ser vivo que, na sua irredutibilidade, existe também através do modo como o representamos — sendo a representação um acto vital de disponibilidade cognitiva.
Num tempo em que as notícias “natalícias” nos alertam para a estupidez humana dos que compram animais bebés como objectos decorativos que, mais tarde ou mais cedo, vão ser descartados, esta é uma exemplar lição pedagógica. Na certeza de que um cartaz não resolve, por si só, nenhum drama. Ainda assim, pode contribuir para que algum olhar faça uma pausa, pressentindo a complexidade do mundo à sua volta.