Aubrey Plaza |
Disponível num canal do cabo, Urso Negro é um belo e inesperado exemplo de um cinema de meios reduzidos que continua a saber reinventar a velha arte de contar histórias — este texto foi publicado no Diário de Notícias (23 setembro).
Cinema independente dos EUA? Convenhamos que, nos dias que correm, com filmes “bons” ou “maus”, o valor simbólico do rótulo enfraqueceu. Os independentes cresceram, a ponto de gerirem alguns mini-impérios tão rentáveis quanto académicos (acontece com as empresas que se especializaram na fabricação de intermináveis variações sobre clichés do género de terror). Mais ainda: quase todos os grandes estúdios de Hollywood criaram os seus departamentos de filmes “difíceis”, alegremente rotulados de independentes.
Pois bem, o mínimo que se pode dizer de Urso Negro (título original: Black Bear), de Lawrence Michael Levine (TVCine), é que nos faz lembrar os tempos heróicos de um outro cinema independente. Encontramos aqui esse espírito criativo, minimalista nos meios, inclassificável nas propostas, que nas décadas de 1960/70 fez a glória da “fábrica” de produção de Roger Corman (por onde passaram, por exemplo, Francis Ford Coppola e Martin Scorsese) e, mais tarde, revelou autores como Amos Poe ou Mark Rappaport (este último presença inesquecível de algumas edições do Festival da Figueira da Foz).
Que acontece, então? Como sempre, qualquer sinopse é redutora, correndo o risco de ser também profundamente equívoca. Isto porque não há, aqui, uma “história” que possa satisfazer os espectadores mais preguiçosos que confundem um filme com uma banal acumulação de “factos” que definem uma teia de “causas” e “efeitos”…
Sublinhemos apenas que estamos, não perante uma história, mas duas, ambas acontecendo numa mesma casa de madeira, num cenário paradisíaco, vocacionada para albergar equipas de filmagens. Na primeira, o casal Gabe e Blair recebe Allison, cineasta que decidiu fazer um retiro à procura de inspiração; na segunda, Gabe está a realizar um filme com Allison, neste caso sua mulher, surgindo Blair como outra das actrizes…
Além do mais, Allison, Gabe e Blair, sendo seres humanos diferentes da primeira para a segunda metade, surgem através dos mesmos intérpretes: respectivamente, Aubrey Plaza, Christopher Abbott e Sarah Gadon (que descobrimos, em 2011, sob a direcção de David Cronenberg, em Um Método Perigoso). Isto sem esquecer que a imagem emblemática de Allison, em fato de banho vermelho, sentada em frente de um lago, pontua as duas histórias.
Mais do que nunca, este é um cinema que apela à metáfora musical: estamos perante dois andamentos — talvez um “Adagio” para abrir, seguramente um “Vivace” a fechar. A segunda parte não serve para “explicar” a primeira (ou o contrário). Trata-se de seguir as duas histórias como partes autónomas, mas obviamente cúmplices, de um exercício dramático sobre o cinema como infinito jogo de espelhos. A fazer lembrar outro filme genuinamente independente: Road to Nowhere/Sem Destino (2010), derradeira e prodigiosa longa-metragem de Monte Hellman. Entenda-se: não uma “teorização” do que é um filme, antes o reconhecimento (e a celebração) do cinema como a mais ambígua das artes — nessa medida, também a mais humana.