segunda-feira, setembro 27, 2021

"She Dies Tomorrow"
— as imagens que (não) vemos

Kate Lyn Sheil

Foi uma reverlação do IndieLisboa: She Dies Tomorrow é um genuíno e fascinante ovni, ou seja, um filme sobre os limites do nosso racionalismo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (29 agosto), com o título 'Uma personagem à espera do amanhã'.

Apresentado na secção ‘Boca do Inferno’ do IndieLisboa (21 agosto/6 setembro), o filme americano She Dies Tomorrow, escrito e realizado por Amy Seimetz, é um genuíno ovni, por certo um dos mais fascinantes objectos que este ano chegou aos ecrãs portugueses. Mesmo a sua eventual inscrição no género de terror, começando por ser duvidosa, acaba por se revelar inadequada: nada do que nele acontece decorre desse marketing obsceno que, à custa de casas assombradas e personagens de adolescentes obrigatoriamente estúpidos, tem saturado o mercado até à náusea.
Em boa verdade, She Dies Tomorrow depende “apenas” da mais ancestral perplexidade cinematográfica de que nenhum género detém o exclusivo: podemos encontrá-la na ficção ou no documentário, numa tragédia romântica de Max Ophüls ou numa comédia de Jerry Lewis. A saber: quando vemos uma imagem, o que é que, realmente, estamos a ver?
Peter Greenaway, autor de uma obra toda ela pontuada por tal perplexidade (com humor q. b.), gosta de dizer que o cinema atravessou o século XX “atrasado” em relação às outras artes, em particular a pintura e a música. Porquê? Porque, em termos gerais, não se libertou da filiação narrativa no romance do século XIX, menosprezando as potencialidades expressivas ou simbólicas das imagens (e também dos sons).
O cepticismo de Greenaway é mais militante do que científico (o que, bem entendido, lhe confere uma energia contagiante), mas vale a pena não esquecermos um facto rudimentar: em décadas recentes, essa amorosa perplexidade face ao que vemos, ou julgamos ver, tem sido metodicamente destruída por forças poderosas como os estúdios Marvel e os seus super-heróis. Há pelo menos duas gerações que foram (des)educadas para acreditar que o “fantástico” nasce do número de planetas ou galáxias que possam explodir, cena sim, cena não… Muitos espectadores dessas gerações não “conseguem” ver um filme de André Delvaux ou Ingmar Bergman porque, para eles, a sua vertigem narrativa se confunde com uma forma de “lentidão”.
Evitemos, por isso, esse vício cultural (ao serviço de uma cultura da redundância) que obriga a que a excelência de um filme se defina pela acumulação de “temas” e “mensagens”. O que conta é a experiência intelectual e sensorial que, através dele, se encena e acontece. She Dies Tomorrow é mesmo sobre aquilo que o título diz: Amy, uma jovem que acaba de comprar uma casa, sente ou pressente que vai morrer… Quando? “Amanhã”. Como? Porquê? Através de quê?
MAGRITTE
O Filho do Homem (1946)
Amy Seimetz, realizadora que também é actriz (vimo-la, por exemplo, em Alien: Covenant, de Ridley Scott), possui uma evidente capacidade de fazer valer as interpretações para lá de qualquer esquematismo “psicológico”. Assim, a admirável Kate Lyn Sheil compõe uma Amy que não se pode definir apenas como uma conjugação de medo e paranóia. Dir-se-ia que ela existe como encarnação de um fantasma que se limita a enunciar uma cândida evidência: todos vamos morrer. E todos serão contaminados pela sua impalpável presença.
O contexto de pandemia não será, por certo, estranho à gestação de um filme como She Dies Tomorrow. Ainda assim, não estamos perante uma espécie de “ilustração” das nossas angústias face ao covid-19. Desde logo, porque o filme possui a paradoxal alegria de uma parábola intemporal; mas sobretudo porque o que nele se encena é a insensatez de um mundo em que nenhuma redenção parece possível. Como num quadro de Magritte (mas sem o seu humor), descobrimo-nos numa paisagem em que as coordenadas clássicas de espaço e tempo já não funcionam; as próprias variações cromáticas parecem restos de uma transcendência que desistiu dos humanos.
She Dies Tomorrow celebra um dos mais ancestrais poderes da montagem cinematográfica: nenhuma imagem permite adivinhar a que vem a seguir — a linguagem é uma forma de “suspense”. Ou ainda: o mundo escapa à nossa vontade de racionalização. Será essa, em última instância, a lição minimalista do filme: mesmo na proximidade da morte, importa não desistir de contar histórias. A arte narrativa é, afinal, a mais sofisticada forma de prazer.