Actor, realizador, homem de televisão, filantropo, é um dos nomes centrais na história do moderno cinema americano e da cultura popular ao longo da segunda metade do século XX: Jerry Lewis faleceu de causas naturais, hoje, dia 20 de Agosto de 2017, na sua casa de Las Vegas — contava 91 anos.
Para muitos espectadores americanos, será "apenas" o homem que, com uma energia contagiante, organizou e apresentou ao longo de 46 anos (até 2014) uma maratona televisiva destinada a angariar fundos para ajudar as crianças que sofrem de distrofia muscular. Para quase todos os frequentadores de salas de cinema na Europa, sobretudo os mais jovens, não passará de uma referência distante, mais ou menos anedótica, sem espessura artística.
De facto, há muito que Jerry Lewis, desiludido com a evolução industrial e comercial de Hollywood ao longo da década de 70, se sentia como um outsider. E com razões para isso: deixou de encontrar condições para a produção regular dos seus filmes e, em boa verdade, quase ninguém o convidava, a não ser para papéis mais ou menos decorativos em que apenas se lhe pedia que interpretasse a sua própria imagem de marca. A grande excepção foi O Rei da Comédia (1982), de Martin Scorsese, um retrato implacável da degradação televisiva do conceito de entertainment em que contracenava com Robert De Niro.
O período de maior glória — e de trabalho continuado — de Jerry envolve, grosso modo, os dezassete filmes em que formou uma célebre dupla com Dean Martin, entre 1949 e 1956 (Pintores e Raparigas, de 1955, dirigido pelo seu mestre Frank Tashlin, poderá servir de símbolo modelar), e as suas realizações ao longo da década de 60, começando com Jerry no Grande Hotel (1960), continuando com títulos admiráveis como O Homem das Mulheres (1961), As Noites Loucas do Dr. Jerryll (1963), Jerry 8 3/4 (1964), Jerry e os Seis Tios (1965) ou Uma Poltrona para Três (1966), desembocando, já em 1970, em Onde Fica a Guerra?, genial variação burlesca sobre a Segunda Guerra Mundial e os valores militaristas. Em qualquer caso, registe-se que, ainda que com interrupções, The Jerry Lewis Show se manteve no pequeno ecrã entre 1963 e 1984.
A sua herança é das mais visceralmente ligadas à grande tradição burlesca, envolvendo Charlie Chaplin, Buster Keaton e o nem sempre muito lembrado Stan Laurel. Ao mesmo tempo, através de um sistema de mise en scène capaz de transfigurar os elementos cenográficos em base de novas e ousadas experimentações dos vectores espaço-temporais, Jerry surgiu na linha de frente das muitas convulsões conceptuais e narrativas que, durante os anos 60, abalaram o cinema da Europa e dos EUA. Em Outubro de 1967, numa entrevista aos Cahiers du Cinéma, a propósito do seu filme La Chinoise, Jean-Luc Godard considerava mesmo que, naquele momento, Jerry Lewis era o "mais corajoso" cineasta de Hollywood.
Da herança de Jerry fazem parte dois livros fundamentais: The Total Film-Maker (1971), sobre os seus métodos e técnicas de realização, e Dean & Me (A Love Story) (2005), evocação do período da sua carreira na companhia de Dean Martin, escrito com a colaboração de James Kaplan. Um dos seus derradeiros aparecimentos públicos foi em Cannes, no ano de 2013, quando o festival o homenageou, apresentado Max Rose, de Daniel Noah, o último filme em que assumiu uma personagem central (um pianista de jazz confrontado com memórias perturbantes, desencadeadas pela morte da mulher).
Com o desaparecimento de Jerry Lewis, fica por resolver o caso do seu filme The Day the Clown Cried (1972). Rodado na Suécia, nele interpreta a personagem de um palhaço, profissional do circo, que é preso pelos nazis e compelido, num campo de concentração, a acompanhar as crianças que vão ser mortas — rodeado de muitas polémicas, minado por diversos problemas de produção, o filme é conhecido através de algumas pouquíssimas imagens mas, quase meio século depois da rodagem, permanece inédito.
>>> Trailer de Pintores e Raparigas (1955), de Frank Tashlin, talvez o melhor filme da dupla Dean Martin/Jerry Lewis.
>>> Trailer de Jerry no Grande Hotel (1960), primeira realização de Jerry Lewis, uma paródia ao próprio sistema clássico de produção.
>>> Trailer de O Homem das Mulheres (1961), sublinhando as características monumentais do próprio cenário.
>>> Jerry Lewis recorda experiência de colaboração com Martin Scorsese e Robert De Niro em O Rei da Comédia (1982).
>>> Trailer de Max Rose (2013), de Daniel Noah, "filme-testamento".
>>> Obituário: New York Times + Vanity Fair + BBC.